Interrogatório de acusado solto por videoconferência
Por Danyelle da Silva Galvão
A Lei n. 11900/09, que alterou o art. 185 do Código de Processo Penal, prevê expressamente o uso exclusivo do recurso tecnológico para o interrogatório de acusados presos. Apesar desta disposição – sem adentrar aqui no mérito da aceitação ou não para acusados presos – não se pode descartar o uso do recurso tecnológico aos acusados soltos em algumas situações, desde que haja pedido ou consentimento expresso do acusado (GALVÃO, 2015).
O Código de Processo Penal nunca dispôs sobre a necessidade de expedição de carta precatória para a realização do interrogatório quando o acusado residir em comarca diversa. Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal decidiu “O interrogatório judicial através de carta precatória é admitido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RP n. 1280 e HC n. 70172)” (STF – 1a T. – HC 70663 – rel. Min. Ilmar Galvão – j. 17/05/1994 – DJ 09/09/1994); e que “nada impede a realização do interrogatório do réu, por Carta Precatória, ao menos quando se encontre preso em outra unidade da Federação”. (STF – 1a T. – HC 72648 – rel. Sydney Sanches – j. 07/11/1995), questão também aceita pelo Superior Tribunal de Justiça, desde que haja intimação do defensor quanto a sua expedição (STJ – 5a T. – HC 32938 – rel. Laurita Vaz – j. 05/10/2004 – DJ 08/11/2004).
A questão tem sido discutida até os dias atuais, especialmente em face do advento da Lei no 11.719/208 que instituiu a identidade física do juiz no processo penal (art. 399, § 2o, CPP). Não raras vezes os Tribunais têm decidido que “o emprego de carta precatória para a realização deste expediente é admissível somente em casos excepcionais, quando razões de ordem material impeçam o comparecimento do acusado perante o juiz natural” (TRF 3a Reg. – 1a T. – HC no 2010.03.00.026179-0 – rel. Johonsom Di Salvo – j. 16/11/2010 – Dje 01/12/2010).
Em relação aos processos de competência dos Tribunais Superiores, cujo rito é previsto pela Lei no 8.038/1990, o interrogatório geralmente é realizado por magistrados de instância inferior, mediante a expedição de cartas de ordem com fulcro no art. 9o, § 1º, daquela lei, e arts. 239, § 1º, e 225, § 1º, dos Regimentos Internos do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, respectivamente.
Apesar da atual previsão do art. 185, § 2º, do Código de Processo Penal sobre o uso da videoconferência ser relativa apenas aos acusados presos, o recurso ser utilizado aos acusados soltos como alternativa às cartas precatórias e às cartas de ordem acima mencionadas, com o intuito de observar a identidade física do juiz e a concentração dos atos processuais na audiência de instrução e julgamento.
Para Vladimir Aras (2008, p. 274), a substituição das cartas de ordem por oitivas por videoconferência diminuiria a quantidade daquelas e possibilitaria a condução de toda a instrução processual pelo juiz natural da causa, além de uma economia de recursos para os acusado soltos e seus defensores, que não precisariam se deslocar até outras comarcas para a realização das audiências.
Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes (2011, p. 84), em obra com edição anterior à Lei no 11.900/2009, apesar de não tratarem especificamente sobre os acusados soltos, afirmavam que o emprego da videoconferência “poderia até ser vantajoso no estabelecimento de um contato mais efetivo do juiz da causa”, ao invés do uso da carta precatória para o interrogatório.
De qualquer sorte, tal prática dependeria de requerimento expresso do acusado, ou seu defensor, porque decorre de opção pessoal do acusado, em sintonia com o seu direito à ampla defesa no sentido de autodefesa.
Inadmissível que decorra de imposição legal ou determinação judicial, mesmo que devidamente fundamentada, salvo se houver concordância inequívoca do acusado.
A excepcionalidade do uso da tecnologia deve ser transportada aos acusados soltos, com ainda mais ressalvas, afinal, nunca haverá subsunção do caso concreto às hipóteses previstas nos incisos do § 2o do art. 185 do Código de Processo Penal.
Conforme já relatado em obra específica sobre o tema (GALVÃO, 2015, p. 149), foi realizado em 2011, perante a Justiça Federal do Mato Grosso o primeiro interrogatório internacional do país por videoconferência envolvendo acusados soltos. A relevância da discussão do caso reside no fato dos acusados estarem soltos e em território estrangeiro.
O magistrado da Vara Federal Única de Sinop – MT, nos autos da Ação Penal no 2007.36.03002400-5, que tratou do acidente aéreo envolvendo aeronave da empresa Gol Linhas Aéreas S/A e o jato americano Legacy, determinou a realização do interrogatório dos acusados americanos em solo estadunidense, por videoconferência. Em sua decisão, o magistrado indeferiu a inquirição dos acusados por juiz norte-americano e determinou que a transmissão de áudio e vídeo ocorresse entre a Justiça Federal de Brasília – DF e a sede do Consulado Brasileiro em Washington – D.C.
Houve impugnação à decisão perante o Tribunal Regional Federal da 1a Região, nos autos de Habeas Corpus no 0013003-71.2011.4.01.0000, sob os fundamentos que inexiste previsão legal para a realização do interrogatório virtual para acusados soltos, e que a determinação para que os acusados comparecessem em Consulado brasileiro para serem interrogados diretamente por magistrado brasileiro não encontra guarida no Acordo de Assistência Jurídica em Matéria Penal firmado pelos dois países (Decreto no 3810/2001), e “configura tentativa de invasão de jurisdição por parte da Justiça Brasileira em solo norte-americano” (termos da petição inicial do Habeas Corpus impetrado perante o TRF da 1a Região, distribuído sob o no 0013003-71.2011.4.01.0000, Rel. Des. Tourinho Neto).
A medida liminar requerida, com o intuito de sustar a realização do interrogatório, foi indeferida, e o mérito da ação constitucional não foi julgado por aquele Tribunal porque houve concordância dos acusados em se submeterem àquela forma de realização do ato processual, desde que a sala de audiência em solo estadunidense fosse em local pertencente ao Poder Judiciário local, o que foi admitido e observado pelo magistrado brasileiro.
A verdade é que a realização do interrogatório dessa forma aproximou o acusado do seu julgador, e manteve a identidade física do magistrado, tendo propiciado a tramitação mais célere do processo.
Conclui-se, portanto, que, apesar da lei não prever o uso da videoconferência para os acusados soltos, a providência não é vedada e pode ser adotada, desde que haja pedido da defesa ou expressa concordância do interrogado, sob pena do Poder Judiciário incorrer na mesma problemática de legalidade que sofreu no início do uso da tecnologia no país, que acarretou na decretação de nulidade dos atos pelo Supremo Tribunal Federal (HC no 88.914 e 90.900).
REFERÊNCIAS
ARAS, Vladimir. Videoconferência, Persecução Criminal e Direitos Humanos. In: MOREIRA, Rômulo de Andrade. Leituras Complementares de Processo Penal. Salvador: Jus Podivm, 2008.
GALVÃO, Danyelle da Silva. Interrogatório por videoconferência. São Paulo: LiberArs, 2015.
GRINOVER, Ada Pellegrini; MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio; SCARANCE FERNANDES, Antonio. As nulidades no processo penal. 12. ed. São Paulo: RT, 2011.