Intransmissibilidade de autos e prova ilícita pro reo
Intransmissibilidade de autos e prova ilícita pro reo
Por Daniel Lima e Rodrigo Piancó
Não restam dúvidas que a introdução da figura do juiz de garantias em nosso sistema de justiça criminal foi um avanço, tanto em termos de controle de legalidade dos atos restritivos de direitos fundamentais, assim como no que se refere à preservação da imparcialidade do magistrado que vai julgar o mérito da causa penal.
Contudo, o progresso não se restringiu apenas à previsão da figura desse novo juiz, que atuará no curso da fase preliminar (de investigação), para garantir a imparcialidade do juiz do processo. Pelo contrário, o avanço foi mais significativo, pois o legislador ordinário, ao estabelecer, por meio do art. 3-C, § 3º, do CPP, a intransmissibilidade dos autos do inquérito para os autos do processo penal, acabou, no frigir dos ovos, robustecendo a garantia da manutenção da imparcialidade judicial e reforçando, por consequência, a estrutura acusatória do processo penal.
Afinal de contas, de nada adiantaria afastar o juiz do julgamento (o juiz sentenciante) da fase preliminar, se ele continuasse tendo acesso ao material inquisitório produzido em sede de investigação. A própria teoria da dissonância cognitiva, exposta por Schunemann em experimento empírico, inclusive, é clara quando detecta que o juiz que tem prévio contato o inquérito tende inequivocamente a condenar o acusado com mais facilidade.
Assim sendo, é correto asseverar que o magistrado que tem conhecimento do material incriminador obtido no inquérito, termina por perseverar na hipótese acusatória sustentada pelo MP durante a instrução, de forma a eliminar, ainda que de forma inconsciente, as informações dissonantes contrapostas à denúncia. E isso, por óbvio, acaba influenciando a decisão judicial.
Posto isto, compreende-se que os arts. 12 e 155, ambos do CPP, foram tacitamente revogados com a entrada em vigor do art. 3-C, § 3º, uma vez que impõem situações que não se coadunam com a nova regra de incomunicabilidade de autos. A incompatibilidade do art. 12, ao nosso ver, é óbvia, afinal de contas, o referido dispositivo diz justamente o oposto do que o novel regramento introduzido pela lei anticrime estabelece.
A incompatibilidade também é evidente no que tange ao art. 155,– apesar de não parecer tão óbvia como na situação anterior -, pois como os autos do inquérito não mais serão transmitidos para o processo, não haverá mais, portanto, a possibilidade de o magistrado se utilizar dos famigerados elementos de informação – produzidos no inquérito – para fundamentar a sentença penal. Ou seja, a fraude processual consistente na utilização dos elementos do inquérito para fins de falsamente “corroborar” ou “cotejar” as provas judiciais produzidas sob o crivo do contraditório não mais pode ser desenvolvida.
Não haverá mais também como subsistir a velha praxe jurídica da “ratificação em juízo do depoimento prestado em sede de delegacia”, pois como já dito, agora, o inquérito não é mais levado a julgamento. Os autos do inquérito, com a mudança, devem ficar acautelados na secretaria do juiz das garantias à disposição do MP e da defesa, que não podem, por sua vez, levar o referido material ao conhecimento do magistrado que irá julgar a causa.
A exceção são os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que serão apensadas em apartado, ficando à disposição, obviamente, do magistrado responsável pelo julgamento.
Posto isto, e tendo-se em mente que esta é a única exceção legal trazida pelo art. 3-C, § 3º, que impõe praticamente uma vedação “absoluta” à transmissão dos autos, coloca-se o seguinte problema: e se existir no inquérito ou na investigação particular (defensiva) elementos probatórios suficientes para comprovar a inocência do acusado, a defesa, nesse caso, poderá levar tais “provas” a julgamento?
Pois bem. Nos parece que tal possibilidade é vedada pelo CPP, já que o nosso sistema processual penal aparentemente adotou o modelo de separação absoluta de autos, diferindo, por exemplo, do que ocorre no sistema italiano do doppio fascículo, que apesar de também estabelecer a separação dos autos, traz hipóteses legais nas quais os elementos colhidos na investigação podem ser utilizados em juízo.
O artigo 500 do Código de Processo Penal Italiano, por exemplo, traz um rol extenso de possibilidades, dentre as quais, autoriza-se que as declarações anteriores das testemunhas sejam utilizadas no julgamento para fins de atestar a credibilidade dos depoimentos prestados perante o juiz do julgamento, é o que a doutrina italiana denomina de contestazione.
Dessa forma, é correto afirmar que, no sistema italiano, o acusador público (MP) pode inserir na discussão, em sede de julgamento, elementos oriundos do inquérito para fins de descredibilizar um eventual depoimento testemunhal contraditório ou discrepante.
Por fim, e a título de conclusão, pensamos que apesar de não existir previsão expressa, o melhor entendimento a ser adotado no caso de “prova” pro reo constante no inquérito, é o mesmo que a doutrina majoritária impõe para o caso de provas ilícitas. Assim sendo, existindo no inquérito provas suficientes para comprovar a inocência do acusado, estas poderão ser comunicadas/transmitidas ao processo, pois nesse caso há a proteção de algo maior, que é a liberdade do acusado.
No mais, deve-se ter em mente ainda que a incomunicabilidade de autos é uma garantia inserida no CPP para proteger o acusado com a imparcialidade judicial, e sendo assim, não deve ser utilizada em seu desfavor. O réu, portanto, não pode ser prejudicado por algo que em tese deveria lhe proteger.
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