A inversão do princípio da razoabilidade
A inversão do princípio da razoabilidade
A Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos asseguram a razoável duração do processo como uma garantia da mais alta importância.
A CF, em seu artigo, 5º, inciso LXXVII, prevê: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
A CADH, por sua vez, trata da matéria em seus artigos 7.5 e 8.1, in verbis:
Art. 7º - Direito à liberdade pessoal 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. Art. 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
A legislação processual penal pátria não consagrou um prazo máximo a ser observado pelo Estado como limite para a duração do processo penal. Existem, no entanto, algumas disposições específicas.
A título de exemplo, menciona-se o prazo de 5 dias para o Ministério Público denunciar réu preso e de 15 dias para denunciar réu solto (art. 46 do CPP); o prazo de 90 dias para a conclusão da primeira fase do rito do Tribunal do Júri (que envolve recebimento da denúncia, citação, apresentação de resposta à acusação, instrução probatória, memoriais e decisão do juízo, conforme artigo 412 do CPP); e o prazo máximo (por expressa previsão legal) de 60 dias para realização da audiência de instrução e julgamento no procedimento ordinário (art. 400 do CPP).
Apesar destes marcos temporais serem expressamente e claramente previstos em lei, na prática (assim como diversas outras regras temporais) costumam ser desrespeitados. A regra, portanto, tornou-se a inobservância destes lapsos temporais; a exceção, o cumprimento deles.
O pior é que, na práxis forense, todo mundo tem ignorado discricionariamente a lei, sem consequências, menos a defesa. O Ministério Público, raramente, denúncia no prazo estampado em lei e o juízo, na grande maioria dos casos, não sentencia no prazo legal.
Agora, quando a defesa apresenta alguma peça intempestiva, ou quando, p. ex., postula a oitiva de uma testemunha fora do prazo de resposta à acusação, o pleito da defesa, normalmente, é indeferido, sob o argumento de ser intempestivo e de ter se operado a preclusão consumativa.
Em outra oportunidade já escrevi sobre isso: sobre a disparidade de armas no processo penal e como todos podem desrespeitar a lei, menos a defesa (acesse aqui).
Para ser justo, a valorosa polícia civil, em muitos casos (a grande maioria), tem concluído expedientes investigativos dentro do prazo estampado no Código de Processo Penal, remetendo-os ao Poder Judiciário tempestivamente. E depois? Bem… os prazos simplesmente não são observados e o constrangimento ilegal causado ao investigado/réu é tratado como mera irregularidade.
Vale dizer, o processo nem iniciou ainda e a lei já está sendo maculada. E não se trata de qualquer violação, mas sim de afronta à Constituição da República Federativa do Brasil, ao Pacto de São José da Costa Rica e ao Código de Processo Penal!
E o entendimento que tem imperado nos Tribunais pátrios é o de que inexiste nulidade, constrangimento ilegal ou prejuízo caracterizado, senão, como dito, mera irregularidade…
Sem embargo da importância do tema relativo a disparidade de armas no processo penal, não é objeto desta Coluna reiterar as considerações já lançadas em outras oportunidades.
Que poucos observam prazos no processo penal não é nenhuma de novidade. Que, enquanto ignoram a lei, exige-se da defesa o respeito dela, também não. Todo mundo já sabe disso. O que merece ser destacado é outra coisa: é a imperdoável inversão que se tem feito sobre a garantia da razoável duração do processo.
É o próprio princípio da razoabilidade sendo utilizado contra a sua razão de existir: a razoável duração processual sendo interpretada para prolongar o processo!
Com efeito, como se sabe, no que tange a aferição da tramitação processual, os Tribunais pátrios passaram a adotar os vetores lançados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. São eles: a) complexidade da causa; b) comportamento das partes; c) atuação das autoridades judiciais; e d) princípio da razoabilidade.
O que merece destaque é a inadmissível circunstância de, ao invés da razoabilidade ser trazida à tona para garantir uma razoável e célere duração do processo (ou, ao menos, não tão demorada!) – e, assim, fazer cessar os constrangimentos ilegais impingidos ao investigado ou acusado -, ela tem sido interpretada, de modo incompatível com a CF e com a CADH, para justificar e legitimar a morosidade processual!
Está tudo em desordem. Os prazos do CPP maculados, o réu, normalmente, preso e o processo não anda. “Está tudo bem”, dizem os Tribunais: a razoabilidade permite esta demora processual, afinal, o Poder Judiciário está soterrado de processos! Isso quando não se atribui a culpa da demora processual ao acusado, em virtude da circunstância de ele fazer uso de seus direitos (como recorrer, postular diligências ou impetrar um HC, etc.).
Eis o quadro: no mundo do dever ser, deveria se garantir a razoável duração do processo; no mundo da realidade, esta garantia fora transformada numa garantia às avessas: que chancela, legitima e justifica a morosidade processual.
Dito de outro modo, para encerrar: a jurisprudência pátria vem interpretando o princípio da razoabilidade para prolongar o processo e não para garantir a sua tramitação célere ou o menos demorada possível.