Investigação criminal defensiva: uma prática alheia à mentalidade inquisitorial
Investigação criminal defensiva: uma prática alheia à mentalidade inquisitorial
Há menos de um ano, o Conselho Federal da OAB, através do provimento 188/2018, passou a regular aspectos concernentes à investigação defensiva, categorizando-a como uma faculdade a ser exercida pelo advogado. Contudo, em que pese os avanços em relação ao assunto no Brasil, ainda trata-se de uma prática incipiente e alvo de discussões a cerca da sua constitucionalidade e compatibilidade com o modelo processual penal brasileiro.
De acordo com a jurisprudência e a doutrina majoritária, o direito de defesa, em sua forma plena, é inaplicável ao inquérito policial, sob o argumento de que se trata de um procedimento de natureza inquisitorial, e não de um processo judicial. Há ainda quem sustente que o legislador constitucional contemplou tão somente os “acusados” em processo judicial, não abrangendo, portanto, os investigados em procedimento administrativo.
Ora, limitar o direito de defesa no inquérito policial em razão da imprecisão do legislador quanto à utilização dos vocábulos “processo” e “acusados” ao invés de “procedimento” e “indiciado” é inidôneo. A interpretação do direito não pode se limitar a literalidade do texto e suas inúmeras possibilidades semânticas, desprezando outros cânones interpretativos, como o contexto histórico em que foi redigido e o contexto social.
Ao prever no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, a garantia ao contraditório e a ampla defesa aos “acusados em geral” é evidente que o legislador tinha o intuito de tutelar todo aquele que fosse alvo de imputações e acusações em sentido amplo, sejam elas em âmbito administrativo ou judicial.
O direito de defesa é um direito-réplica, que nasce com a agressão que representa para o sujeito passivo a existência de uma imputação ou ser objeto de diligências e vigilância policial. (LOPES JR; GLOECKNER, 2014, p. 470)
Ademais, o princípio da isonomia assegurara às partes paridade de armas, assim como o direito de influir na formação de elementos de convicção. Com feito, tem-se que a investigação preliminar está em crise. O sistema inquisitorial é incompatível com o Estado Democrático de Direto, modelo este orientado pela prevalência dos direitos e garantias fundamentais, não só como meta social, mas também como diretriz interpretativa (PACELLI, 2017).
Assim, é imperioso concluir que a implementação da investigação criminal defensiva no direito brasileiro, como um poder-dever do advogado, é uma tarefa penosa, considerando o contexto vigente, por múltiplos fatores, que não se restringe somente ao direito.
Ideias inquisitórias e de cerne autoritário ainda estão presentes na mentalidade do povo desde o século XV, período em que foi instaurada a inquisição, as quais foram reforçadas pelos golpes de 1937 e de 1964.
Vale lembrar que, na Inquisição, o papel da defesa era reputado como inútil e embaraçador à empreitada do inquisidor pela busca da verdade. Ainda que o advogado se fizesse presente, o acusado não possuía voz; o papel da defesa no processo inquisitorial era fazer o acusado confessar mais rápido, de modo a agilizar a condenação (BOFF, 1993).
A defesa foi colocada conjuntamente no banco dos réus; era vista como inimiga do Estado e da sociedade. A ruptura dessa mentalidade é o maior desafio para democratização do Processo Penal brasileiro. Não é atoa que há tanta resistência em descentralizar a atribuição de investigar e julgar da Autoridade Policial, em que pese a Constituição Federal consagrar o princípio acusatório em seu texto legal.
Por isso, o exercício da advocacia criminal é tão árduo e obstaculizado. O advogado ainda é visto como um inimigo ao bom andamento do processo e da celeridade da persecução penal.
As instituições cedem à opinião pública não medindo esforços para fundamentar uma decisão (seja ela de cunho administrativo ou judicial) que faça jus ao clamor popular, ainda que isso represente uma arbitrariedade, indo na contramão do princípio da legalidade.
Isso consiste em nada menos do que uma moralização do direito de defesa, resultado de uma tradição inquisitorial ainda muito presente, caracterizando um dos pontos de crise no processo penal brasileiro, especialmente quando falamos em investigação preliminar.
Logo, a ausência de tradição democrática corrobora o sistema inquisitório, que prospera na investigação preliminar, e contamina algumas das novas formas de investigação, especialmente a delação premiada, ação controlada, e agente infiltrado, meios que afetam garantias fundamentais do investigado, como o direito à intimidade por exemplo, além de não lhe proporcionar o direito à contraprova.
As novas formas de investigação em nada inovam em suas técnicas ao reduzir o investigado a um mero instrumento de informação, pelo contrário, escancaram a abstenção do Estado em se adaptar às novas tecnologias da informação, as quais deram ensejo à nova criminalidade. Outro aspecto que caracteriza a crise na investigação preliminar são as obsoletas formas de investigação, que priorizam a prova testemunhal, abstendo-se das provas de cunho mais científico.
Atualmente, tudo é célere e por isso perecível, o que impõe novos meios para obtenção de provas, afastados das antigas metodologias, evidentemente. A investigação criminal defensiva tem sido amplamente utilizada pelo direito estadunidense e italiano.
Nesses sistemas eleva-se o investigado a categoria de sujeito de direitos ao permitir sua participação através de seu defensor técnico, assegurando-lhe o direito à defesa efetiva, não constituindo a aludida forma de investigação uma faculdade do acusado mas sim um poder-dever do defensor técnico.
O sistema jurídico estado-unidense é fundamentalmente adversarial, ou seja, controle do processo e a iniciativa probatória está quase que exclusivamente nas mãos das partes e de seus advogados (GARAPON; PAPAPOULOS, 2008), cabendo-lhes, portanto, a colheita de elementos de prova aptos a subsidiar suas alegações.
Contudo, não há disposição legal tratando precisamente da investigação criminal defensiva no ordenamento estado-unidense, como é típico dos sistemas da common law. Isso porque, a investigação criminal defensiva decorre do direito à defesa técnica, disposto na 6ª Emenda à Carta Política, cuja importância é reforçada pela Suprema Corte, que reconhece a aludida prática como imprescindível para um efetivo equilíbrio das partes e como corolário lógico do direito de defesa (ROBERTS, 2004, tradução livre).
O processo penal italiano, por sua vez, tem se tornado cada vez mais adversarial: restringiu a tarefa do magistrado em supervisionar a investigação e em julgar de acordo com os pedidos formulados pelas partes, de modo a privilegiar a dialética processual entre acusação e defesa (TONINNI, 2010, tradução livre), afastando definitivamente e figura do juizpesquisador.
Essa descentralização foi o que permitiu a participação paritária da defesa durante a fase preliminar. Foi por meio da Lei nº 397/2000 que se disciplinou a investigação criminal defensiva, estabelecendo-lhe procedimento próprio para sua concretização (MACHADO, 2009).
Como se vê, no Brasil, ainda é necessário a sedimentação do valor ético de investigar na cultura dos legisladores e dos juristas, posto que a efetiva defesa não é regulada pela legislação infraconstitucional, e é trata como algo prescindível pela jurisprudência majoritária, ainda que se trate de um notável caso de negligência ou imperícia, em que pese o texto constitucional consagre tal basilar ao prever que defesa será exercida com todos os meios e recursos a ele inerentes.
Por fim, é de se salientar que o vetor “paridade” reclama a participação da defesa na investigação preliminar, uma vez que não há o que se falar em equilíbrio quando inexiste oposição, de modo que nem a defesa e nem acusação possam impor suas perspectivas como a única verdade.
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. IN: EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores. Traduzido por Maria José Lopes. Rio de Janeiro: Rosa Tempos, 1993.
GARAPON, Antoine; PAPAPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura Jurídica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
LOPES JR.,Aury: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2014.
MACHADO, André Augusto Mendes. A investigação criminal defensiva. 2009. 207 f. Dissertação (Mestrado em Direito Processual Penal) – Faculdade de Direito, USP, São Paulo.
ROBERTS, Jenny. Too little, too late: ineffective assistance of counsel, the duty to investigate and pretrial discovery in criminal cases. Fordham Urban Law Journal. May. 2004, pp.1097-1156.
TONINI, Paolo. Manuale dí Procedura Penale. Redatta da Fichera Giancarlo: 2010.
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