Investigação criminal tecnológica e direitos fundamentais das vítimas de crimes
Investigação criminal tecnológica e direitos fundamentais das vítimas de crimes
Por Gustavo Mesquita Galvão Bueno e Higor Vinicius Nogueira Jorge
De acordo com o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 1980 ocorreram 11,69 homicídios para cada 100 mil habitantes no Brasil. Depois de 10 anos, em 1990, a taxa apontada pelo Instituto foi de 22,22 homicídios, em 2000 continuou subindo, atingindo o patamar de 27,35 para cada 100 mil pessoas e, em 2017, o IPEA apontou 31,59 homicídios por cada 100 mil pessoas, demonstrando que, apesar da desaceleração nos índices dos últimos anos, desde 1980 a incidência desse tipo delito aumentou.
Considerando referidas estatísticas cabe propor alternativas para aumentar a possibilidade de elucidação de crimes e, por consequência, diminuir a incidência de delitos, especialmente aqueles praticados contra a vida, sendo imperioso destacar que a denominada “Investigação Criminal Tecnológica” pode auxiliar neste intento.
A partir da eclosão da primeira Revolução Industrial, que ocorreu no término do século XVIII na Inglaterra, e no início do século XIX, se espalhou por toda Europa, a ciência e a tecnologia passaram a experimentar um constante processo de evolução que rapidamente transformou a vida do homem e da sociedade.
Todavia, foram nas últimas décadas – com o advento da Internet e das Tecnologias da Comunicação – que o progresso passou a ocorrer de maneira explosiva, causando um profundo impacto nas relações sociais, políticas e financeiras de todo o mundo, contribuindo também para o fenômeno da globalização.
Nas palavras do sociólogo Octavio Ianni, a globalização está calcada no avanço da tecnologia, e neste contexto as relações, os processos e as estruturas econômicas, políticas, demográficas, geográficas, históricas, culturais e sociais, que se desenvolvem em escala mundial,
adquirem proeminência sobre as reações, processos e estruturas que se desenvolvem em escala nacional.
A transformação da sociedade, notadamente após o advento da Internet, ao tempo em que favoreceu a difusão do conhecimento por meio da democratização do acesso às informações, também tornou mais céleres e intensas as comunicações e interações entre os indivíduos, eliminando fronteiras e transcendendo o conceito de relações sociais.
CASTELLS (2003, p. 251 et. seq.) denomina esse período de “Era da Informação”, uma era que propicia a formação de uma nova sociedade emergente na cultura do terceiro milênio: a “Sociedade Informacional”, na qual se evidencia a conjunção de uma série de inovações institucionais, tecnológicas, organizacionais, econômicas, políticas e sociais, a partir das quais a informação e o conhecimento passam a desempenhar papel estratégico.
Segundo KUNRATH (2017, p. 25):
vivenciamos o nascer de uma nova era, a era da revolução da informação e comunicação, através da tecnologia da informação (TI), com inimaginável quebra de paradigmas intelectuais, com visíveis transformações culturais da nova geração conectada e tornando o mundo real e cibernético cada vez uma realidade mais ampla e indissociável, com largo desenvolvimento da humanidade, considerada, por muitos cientistas, maior e muito mais importante e benéfica à humanidade que a Revolução Industrial.
Nesta senda, a despeito de seus efeitos positivos para a humanidade, esta nova realidade despertou a prática de um novo fenômeno criminal, impulsionado pela sensação de anonimato e impunidade, pela potencialização dos danos aos bens jurídicos visados, pela facilidade do aprendizado de técnicas criminosas, e pelo favorecimento da cooperação entre indivíduos com propósitos desviantes.
Ao passo em que a rede mundial de computadores se espraiou pelo mundo, “a criminalidade informática absorveu as características da transnacionalidade, universalidade e ubiquidade” afirma KUNRATH (2017, p. 52), e prossegue
considerando que a prática de delitos cibernéticos pode ocorrer em qualquer país, em qualquer lugar que utilize sistemas e redes computacionais, sejam públicos ou privados.
Importante notar, também, que os meios eletrônicos têm provocado, de maneira determinante, uma mudança radical em nossa percepção do crime. O fenômeno criminal, antes vivenciado na realidade sensível, ou seja, passível de ser sentida e constatada pelos sentidos do corpo humano, hoje se transfere cada vez mais para a realidade virtual. Os fatos ocorridos neste ambiente, apesar de invisíveis aos olhos do homem, produzem reflexos imediatos em sua realidade social, familiar e financeira.
Cabe observar que, devido à maior dificuldade de detecção dos crimes praticados em ambiente cibernético, a cifra negra – diferença existente entre a criminalidade real e a criminalidade registrada pelos órgãos públicos (SUMARIVA, 2019, p. 165) é certamente muito significativa, de modo que as estatísticas atualmente disponíveis (já bastante alarmantes) muito provavelmente estão longe de refletir o real impacto deste fenômeno criminal na sociedade.
Diante de tal contexto, não resta dúvidas acerca da contundência do impacto dos meios eletrônicos na criminalidade de massa, exigindo novas técnicas de percepção, detecção e enfrentamento, e impondo ao Estado o desafio de incrementar seus mecanismos de controle social para o eficaz combate a este fenômeno, terreno em que a investigação criminal assume importância de mais alto relevo.
Investigação Criminal Tecnológica pode ser conceituada como conjunto de recursos e procedimentos, baseados na utilização da tecnologia, que possuem o intuito de proporcionar uma maior eficácia na investigação criminal, principalmente por intermédio da inteligência cibernética, dos equipamentos e softwares específicos que permitem a análise de grande volume de dados, a identificação de vínculos entre alvos ou a obtenção de informações impossíveis de serem agregadas de outra forma, da extração de dados de dispositivos eletrônicos, das novas modalidades de afastamento de sigilo e da utilização de fontes abertas.
No âmbito da legislação, a Lei nº 12.735/2012 trouxe importante mandamento em seu art.4º, ao dispor que “os órgãos de polícia judiciária estruturarão, nos termos de regulamento, setores e equipes especializadas no combate à ação delituosa em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado”.
Posteriormente, a Lei nº 12.965/2014, também denominada Marco Civil da Internet, dispõe sobre a possibilidade de fornecimento pelos provedores, mediante representação judicial pelo delegado de polícia ou Ministério Público, dos registros de conexão e de acesso a aplicações pessoais. Já em relação a dados cadastrais que informem qualificação pessoal, a requisição pode ser feita diretamente aos provedores, sem necessidade de ordem judicial (art.10, Lei nº 12.965/2014).
Observa-se assim a acertada preocupação de nosso legislador em incrementar e qualificar a atividade investigativa – controle social formal de primeira seleção – reconhecendo-a como medida determinante para o eficaz combate aos crimes praticados por meios eletrônicos.
Noutro prisma, o estudo da vítima, de seus fatores de vulnerabilidade, e o incremento de políticas públicas de proteção e garantias de seus direitos revelam-se tarefas fundamentais para o combate eficaz à criminalidade.
O papel da vítima foi colocado em segundo plano nos últimos dois séculos pelo Direito Penal e pelo Estado. Foi apenas após a 2ª Guerra Mundial, e a barbárie do holocausto, que os estudos criminológicos da vítima, impulsionados pelas atrocidades cometidas neste evento, ganharam destaque, nascendo assim, a Vitimologia (SUMARIVA, 2019, p. 165).
No Brasil, foi justamente a notoriedade advinda de um crime ocorrido com uma vítima famosa que levou à edição da primeira lei de caráter penal dedicada exclusivamente aos delitos informáticos, a Lei nº 12.737/2012. Após ter seu computador invadido, a atriz Carolina Dieckmann teve suas fotos em situações íntimas subtraídas, tendo o autor lhe exigido o pagamento de quantia em dinheiro em troca de sua não divulgação. A atriz levou o fato às autoridades e o tornou público, o que gerou comoção social e acelerou a edição da lei em questão.
Fundamental esclarecer que sempre que uma pessoa é vítima de um crime, determinados direitos fundamentais são violados, como por exemplo, o direito à vida de uma pessoa que teve a sua vida ceifada, o direito de propriedade de um cidadão que teve seu veículo subtraído, o direito à liberdade da vítima de extorsão mediante sequestro etc, além de dezenas de outros direitos fundamentais que são atingidos sempre que ocorre a prática de um delito.
Cabe também esclarecer que vítimas de crimes possuem o direito de receber atendimento médico e psicológico e além da orientação preventiva para que não evitem sofrer novos crimes.
No Estado de São Paulo existe o Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI), que oferece
atendimento público e gratuito às vítimas de crimes violentos e seus familiares. Conta com uma equipe interdisciplinar de triagem, especializada em receber, triar e encaminhar os usuários para a rede ou serviços pertinentes as suas demandas. Também possui uma equipe interdisciplinar de atendimento especializada em acolher, atender, informar e orientar vítimas e familiares de vítimas nos casos de crimes de homicídio, latrocínio e ameaça.
Além disso, como estabelece o Código de Processo Penal, vítimas possuem o direito permanecer em local reservado, separado do suposto autor do crime antes da audiência, além de ter o direito de receber a comunicação dos atos processuais.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao atendimento adequado das vítimas por parte da imprensa, que muitas vezes expõe indevidamente elas.
Na realidade, todos os órgãos que integram a persecução criminal devem direcionar esforços para oferecer todo o suporte necessário para diminuir os efeitos decorrentes dos crimes que a vítima sofreu.
Apesar de não ser habitual, a vítima sempre tem a possibilidade de receber indenização decorrente dos delitos sofridos.
Os órgãos da persecução criminal devem atuar de modo efetivo para identificar os autores de crimes, sendo necessário que eles sejam devidamente responsabilizados e não reincidam. Sob esta perspectiva, a Investigação Criminal Tecnológica, possui o condão de aumentar a possibilidade de identificação da autoria delitiva, em razão de incrementar a eficácia na atuação dos órgãos de investigação.
Pelo exposto, é importante que exista uma reflexão sobre a importância de intensificar políticas públicas com o fim de preservar direitos fundamentais das vítimas de crimes e também, é muito importante que os integrantes das Polícias Civil e Federal sejam capacitados a adotar determinados procedimentos da Investigação Criminal Tecnológica visando potencializar a atuação no enfrentamento da criminalidade na busca da almejada pacificação social.
REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel. A Galáxia Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 251 et. seq.
KUNRATH, Cristina. A expansão da criminalidade no Cyberespaço. Feira de Santana: Universidade de Feira de Santana, 2017, p. 25.
SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. Niterói: Impetus, 2019, p. 165.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?