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Investigações internas e seus desdobramentos no processo penal

Investigações internas e seus desdobramentos no processo penal

Desde o advento da denominada Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/2013), novas figuras jurídicas passaram a ocupar o espaço de debates, sobretudo no âmbito penal e administrativo. Com a possibilidade de maior responsabilização das pessoas jurídicas no direito pátrio, sobretudo sem a necessidade de comprovação de culpa (responsabilidade objetiva), duas figuras assumiram lugar de destaque na pauta de discussões das ciências jurídicas: os programas de integridade (compliance) e os acordos de leniência.

Cabe aqui uma breve introdução.

No ordenamento jurídico brasileiro, ao contrário do direito alienígena, a responsabilidade penal da pessoa jurídica ainda é matéria incipiente e bastante limitada. A legislação brasileira apenas prevê a possibilidade de responsabilização penal dos entes coletivos na hipótese de crimes ambientais, nos termos expostos na Lei n. 9.605/98, e, por conseguinte, exclui tal previsão para as demais situações de injustos penais. Isso, em suma, torna a empresa, na esfera penal, um alvo ainda distante de responsabilidade.

Por outro lado, a alteração legislativa ocorrida em 2013, após uma série de protestos ocorridos no país inteiro (LEAL; RITT, 2014, p. 51), passou a prever  instrumentos mais rígidos e sancionatórios de combate à corrupção e aos demais ilícitos contra a administração pública que tivessem origem em empresas. Isso ocorreu, notadamente, porque parcela dos atos ilícitos cometidos em prejuízo da administração pública contam com a contribuição de grandes corporações.

E foi justamente nesse contexto que a legislação anticorrupção surgiu.

A chamada Lei Anticorrupção, com a finalidade clara de tornar mais rigorosa a punição de empresas envolvidas em atos atentatórios à administração pública (o que torna a expressão “corrupção” mais ampla), passou a prever a possibilidade de responsabilização objetiva do ente coletivo na seara administrativa.

A partir de um extenso rol de “penas” (ou sanções administrativas), a lei possibilita que a empresa seja punida desde uma pena pecuniária até a sua dissolução compulsória, mostrando-se, assim, até mais rígida que as sanções penais previstas na lei de crimes ambientais (GABARDO; CASTELLA, 2015, p. 139).

E é nesse novo ambiente que se voltam, efetivamente, os olhares ao compliance e aos acordos de leniência.

Com a ampla possibilidade de responsabilização administrativa (em geral mais severa que a penal), a legislação previu também a possibilidade de atenuação das sanções por meio da constatação de condutas positivas adotadas pelo ente coletivo com o intuito de se fazer cumprir as normas em geral.

A partir de uma noção de autorregulação, o ordenamento jurídico trouxe a figura dos programas de integridade como uma verdadeira atenuante da reprovabilidade do comportamento ilícito. Ou seja, demonstrando a empresa possuir mecanismos de controle e, sobretudo, de cumprimento da legislação, isso poderá reverter em seu benefício, evitando responsabilização severa.

Por óbvio que os programas de integridade não se resumem a normas internas da empresa e muito menos em uma simples cobrança de observância da lei. A questão vai além. Um programa de integridade, muito mais que fazer cumprir a norma, deve servir, acima de tudo, como mecanismo de criação de uma verdadeira cultura de ética empresarial e governança corporativa dentro da empresa. E tais objetivos podem se manifestar sob dois aspectos fundamentais: a prevenção e a repressão dos ilícitos.

Com relação à prevenção, para além de não ser o escopo desta exposição, maiores detalhes nesse momento se tornam prescindíveis – até mesmo porque se torna algo bastante indutivo o entendimento acerca do que possa ser. A preocupação desse breve estudo, em específico, volta-se à repressão das ilicitudes no seio da empresa.

Pois bem.

Investigações internas

Como exposto, a existência de um programa de integridade efetivo pode servir como circunstância atenuante em favor da empresa em vias de responsabilização e uma das formas de demonstrar a efetividade do programa, sem dúvida, passa pela investigação do ilícito conduzida pela própria empresa, o que se chama, atualmente, de investigação interna.

Ainda que empresas possuam um sistema de prevenção bastante eficaz, inevitavelmente, há a possibilidade de cometimento de ilícitos por parte de seus componentes e, nessas situações, o programa de integridade deve partir para uma nova abordagem.

Com a descoberta da ilicitude – o que pode ocorrer por meio de mecanismos internos de denúncia (whistleblowing) ou por qualquer outra forma (como é o caso de auditorias e sindicâncias) –, as empresas tendem a se antecipar a eventual investigação conduzida pelas autoridades públicas, justamente com a finalidade de demonstrar o intento de colaboração com a elucidação e punição da ilicitude.

Nesse panorama, tem sido cada vez mais comum notar que empresas que se tornaram “alvos” de grandes operações passaram a instaurar, por sua conta, investigações internas, conduzidas por pessoas designadas pela própria empresa, com o claro escopo de fornecer elementos para, em primeiro lugar, viabilizar a defesa da empresa, e, em segundo lugar, possibilitar o afastamento de sua responsabilidade administrativa a partir da indicação dos indivíduos (ou do setor inteiro) que praticaram a conduta irregular.

Da mesma forma, após a ampliação da possibilidade de acordos de leniência – num aspecto mais amplo que aquele então previsto pela Lei Antitruste (Lei n. 12.529/2011) – e da possibilidade de afastamento completo de responsabilidades, as investigações internas também passaram a servir ao propósito de encartar material suficiente e atrativo às autoridades públicas na busca de acordos de colaboração em favor da pessoa jurídica.

As investigações internas, pois, dentro desse novo aspecto derivado da lei anticorrupção, tendem a ser cada vez mais uma opção das empresas como forma de defesa. E isso, malgrado não aparente, apresenta sérias consequências penais, especialmente no que se refere ao processo penal.

Com a solidificação das investigações internas como mecanismo de defesa, não será incomum que os elementos de prova de ilícitos penais cometidos por funcionários e executivos das corporações sejam, em primeiro plano, desvelados no âmbito da própria empresa, a qual, cumprindo seu intento de colaboração com as autoridades públicas, seguramente os entregará aos responsáveis pela investigação pública, que, por sua vez, darão início à persecução penal. E aí, nesse ponto, passam a surgir os problemas processuais penais.

As investigações internas, no Brasil, ainda não possuem uma regulamentação específica e, nessa medida, não apresentam limites claros sobre sua condução. Veja-se que a empresa não está sujeita a estritas regras de controle probatório, ao contrário do que ocorre com o Estado.

Com efeito, as empresas poderiam acessar dados e elementos – sem autorização judicial – aos quais as autoridades não poderiam, como é o caso de caixas de e-mails e telefones celulares postos à disposição dos seus empregados. E isso tudo a partir de simplórias cláusulas eventualmente postas no contrato de trabalho.

O grande risco da situação exposta, como alerta NIETO MARTÍN (2015, p. 234-235), está justamente na possibilidade real e concreta de autoridades públicas, cientes de seus limites probatórios, cada vez mais deixarem a investigação a cargo da empresa, visando, assim, fugir das limitações legais da produção de provas que pressupõe a invasão de dados. A empresa, nesse aspecto, passa a ser uma extensão informal do Estado-Acusação com objetivo claro de angariar elementos então inacessíveis pelos investigadores públicos.

O problema disso tudo, por suposto, está em quais são os limites da prova e, sobretudo, em que medida tais elementos – carreados por meio da investigação interna – podem ser utilizados no âmbito judicial em prejuízo dos indivíduos indicados pela empresa como responsáveis.

Haveria, por exemplo, uma obrigação do investigado/funcionário colaborar com a empresa? Ele poderia ser obrigado, mediante cláusula do contrato de trabalho, a renunciar ao direito ao silêncio? O acesso de seus dados pessoais (e-mail e telefone funcionais), por parte da empresa, poderiam ser aproveitados pela investigação pública? De que maneira devem ser conduzidas as investigações? De que forma os atos seriam registrados? O investigado poderia acessar os dados já colhidos?

São essas questões, dentre muitas outras, até então inexistentes, que o direito processual penal precisará se ocupar. A partir da tendência de privatização das investigações e da presença de uma cultura negocial na seara processual, novos limites devem ser propostos e, sobretudo, as garantias fundamentais – já existentes – precisarão ser adaptadas a esse novo estado de coisas.

A investigação interna é uma realidade e seu estudo, sem dúvida, passa a ser verdadeira obrigação do profissional que pretende ingressar no âmbito do direito penal e processual penal econômico.


REFERÊNCIAS

GABARDO, Emerson; CASTELLA, Gabriel Morettini. A nova lei anticorrupção e a importância do compliance para as empresas que se relacionam com a administração pública. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, v. 15, n. 60, p. 129-147, 2015.

LEAL, Rogério Gesta; RITT, Caroline Fockink. A previsão dos mecanismos e procedimentos internos de integridade: compliance corporativo na lei anticorrupção: sua importância considerado como uma mudança de paradigmas e educação empresarial. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 42, p. 46-63, 2014.

NIETO MARTÍN, Adán. Investigaciones internas. In: NIETO MARTÍN, Adán et al. Manual de cumplimiento penal en la empresa. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2015. p. 231-270.


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