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Investigado que celebrar ANPP poderá ser ouvido como testemunha da acusação?

Investigado que celebrar ANPP poderá ser ouvido como testemunha da acusação?

Por Victor Oliveira Lopes da Franca

Introduzido no ordenamento pátrio pela Lei 13.964/2019, o Acordo de Não Persecução Penal foi mais um dos instrumentos da guinada “consensual” que a justiça criminal brasileira tomou desde os anos 90, fruto da relativização do princípio da obrigatoriedade da ação penal. Seu cerne consiste no reconhecimento da responsabilidade pela prática de determinadas infrações pelo imputado, sujeitando-se a certas condições impostas pelo representante do Ministério Público, objetivando ser agraciado com a perda do direito de punir do Estado.

Frise-se que, de forma ligeiramente semelhante à delação premiada, o celebrante do ANPP “abre mão do silêncio” para pactuar com o acusador. São pontos controversos dos referidos institutos jurídicos, cujas constitucionalidades são questionadas junto ao STF (ADI’S 5.567 e 6.304).

CPP Art. 28-A: Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (…)

Lei das ORCRIM: Art. 4º (…) § 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.

Porém, o fato é que ambos os dispositivos estão em plena vigência até o presente momento, sendo mantida pelos Tribunais Superiores a possibilidade de “disponibilidade provisória” do direito à abstenção.

O §13º do art. 28-A do CPP prevê que o integral cumprimento do acordo conduzirá à extinção da pretensão punitiva estatal. Ou seja, a confissão do celebrante do ANPP não ocasionará a ele gravame penal de nenhuma espécie por aqueles fatos, além dos termos já previstos no acordo firmado.

Em outra dimensão, é sedimentado na doutrina pátria o entendimento de que a confissão do ANPP surte efeitos estritamente endoprocessuais, isto é, não poderá ser utilizada para subsidiar imputação a terceiros ou processos de outra natureza (ex: ações de responsabilização por improbidade administrativa).

Destarte, as tratativas realizadas pelo órgão do Ministério Público e o investigado com base no reconhecimento voluntário do crime não poderão extrapolar as paredes daquele negócio jurídico-processual.

Porém, é certo que a confissão, em razão da exigência de circunstancialidade, terá de ser minimamente pormenorizada e, por conseguinte, no âmbito do concurso de agentes, também abrangerá a conduta do coautor que não vier a acordar com o parquet (e que, portanto, será denunciado).

Tendo esse cenário em vista, surge um questionamento específico relacionado ao concurso de pessoas:

Suponhamos que X e Y tenham praticado um crime em conjunto, mas somente o primeiro confesse e pactue com o MP (Y não confessa ou não preenche os requisitos).

O órgão de acusação poderá arrolar X como testemunha no processo em que se pretende a condenação de Y?

Em tese, nenhuma testemunha é obrigada a depor sobre fatos autoincriminatórios. É o que salienta a jurisprudência do Tribunal da Cidadania:

Ora, a Constituição Federal assegura ao indivíduo a prerrogativa de não se autoincriminar. Desse modo, não configura o crime em desfile quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la. Noutras palavras, o privilégio contra a autoincriminação exonera o depoente do dever de depor sobre fatos cujo esclarecimento possa ensejar sua responsabilização penal. Evidente, portanto, a atipicidade da conduta.’’ HABEAS CORPUS Nº 603445 – PB (2020/0196909-4) – STJ.

 RECURSO EM HABEAS CORPUS. FALSO TESTEMUNHO. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ACUSADO QUE PRESTOU DEPOIMENTO EM JUÍZO, DIVERSO DO APRESENTADO NA FASE EXTRAJUDICIAL, COM O FIM DE SE EXIMIR DO CRIME DE POSSE DE DROGAS PARA USO PESSOAL (ART. 28 DA LEI N. 11.343/2006). EXERCÍCIO DO DIREITO AO SILÊNCIO OU NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. MANIFESTA ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Esta Corte pacificou o entendimento segundo o qual o trancamento de ação penal pela via eleita é medida excepcional, cabível apenas quando demonstrada, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a manifesta ausência de provas da existência do crime e de indícios de autoria. 2. Este Superior Tribunal já decidiu ser atípica a conduta de falso testemunho, quando a testemunha, compromissada em juízo, desobriga-se de dizer a verdade, com o fim de evitar sua acusação pela prática de algum crime, tendo em vista os postulados constitucionais do direito ao silêncio e da não autoincriminação. 3. No caso, a imputação do crime de falso testemunho ao paciente, decorre do fato de que ele, ao depor em juízo, fez afirmação diversa da prestada na fase extrajudicial, com o fim de ocultar o fato de ter ido ao ponto de tráfico para adquirir droga, ou seja, eximir-se do crime de posse de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/2006). 4. Recurso provido para, reconhecendo a atipicidade da conduta de falso testemunho imputada ao paciente, determinar o trancamento da ação penal. (RHC 66.908/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 10/11/2016, DJe 25/11/2016, grifei).

Como se observa alhures, o que a construção jurisprudencial pretende evitar é que a testemunha, no exercício do múnus cooperativo, seja impelida a expor fatos que tenham o condão de originar uma persecução criminal e eventual condenação penal contra si, ônus este que não estaria compelida a suportar caso afigurasse como réu. Ou seja, o STJ interpreta “incriminação” como sinônimo de acusação concreta.

Ocorre que, pelos motivos expostos inicialmente, quando da adesão ao acordo não persecutório, tanto o investigado RENUNCIA AO SILÊNCIO, como o integral cumprimento do “contrato” FULMINA A PUNIBILIDADE DELITIVA. Nesse diapasão, o eventual testemunho em juízo jamais ocasionaria sanção penal para X.

Em outras palavras, não há que se falar em testemunho por fatos que possam vir a ocasionar responsabilização penal ao investigado, pois esta foi obstada pela concretização do pacto pré-processual.

E, então, exsurge a dúvida: o Promotor de Justiça poderá arrolar X como testemunha e obrigá-lo a testemunhar contra Y? Sob pena de incorrer no delito de falso testemunho?

Mais: O MP poderia propor ao agente confessante a produção antecipada de prova testemunhal, em audiência preliminar, na qual ele seria instado a explanar as nuances da prática delitiva do codelinquente?

O inciso V do artigo supracitado prescreve que o Ministério Público poderá indicar outras condições a serem cumpridas, desde que proporcionais e compatíveis com a infração penal imputada. Em razão disso, entende-se que o rol positivado tem natureza exemplificativa, o que não impediria a inserção da cláusula probatória retromencionada.

São pontos fulcrais ainda não debatidos pela doutrina até este momento.

Urge ressaltar que não se discute aqui a máxima de que ninguém está obrigado a testemunhar sobre fatos autoincriminatórios. A celeuma reside justamente na indagação da manutenção da natureza autoincriminatória deste testemunho, cujos relatos não trarão à tona novos fatos para o depoente, ademais aqueles que já foram objeto do negócio jurídico precedente e que terão a sua punibilidade aniquilada tão logo cumpridas as condições ajustadas.

Isto posto, se a regra é a obrigatoriedade de dizer a verdade e colaborar com os órgãos persecutórios do Estado, sendo excetuados apenas os fatos que possam trazer consequências penais gravosas à testemunha, é inadiável inquirir se deveria ser aplicada a regra da compulsoriedade do testemunho ao investigado que celebra o ANPP, segundo a qual ele poderia ser arrolado pelo titular da ação penal para depor em juízo contra o corréu não celebrante.

Guardo as devidas vênias às opiniões contrárias e espero que o presente ofício possa aflorar esse debate de inestimável valia.


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