A inviolabilidade de domicílio e seus limites semânticos
A inviolabilidade de domicílio e seus limites semânticos
Em texto intitulado Limites semânticos e sua importância na e para a democracia, Lenio STRECK (2014) esclarece porque o respeito aos limites semânticos do texto normativo é condição de possibilidade para a existência (no nosso caso, sobrevivência) de um Estado Democrático de Direito.
O texto normativo, afirma STRECK, estabelece os “extremos de possíveis variantes de significado, assegurando, pois, os limites necessários ao intérprete”. No interior do texto é que se encontram as possibilidades de interpretação, de modo que extrapolar essas possibilidades de interpretação que o próprio texto define é desrespeitar a Constituição e a legislação democraticamente constituída.
Num momento histórico em que o Judiciário tomou para si o protagonismo político, mediante forte apoio dos principais veículos de comunicação do País, a preocupação de STRECK é emergencial e serve como ferramenta de análise das normas criadas[1] pelos Tribunais brasileiros que consagram limitações a direitos e garantias fundamentais.
O próprio STRECK, no mencionado texto, faz contundente crítica à doutrina e à jurisprudência que desconsideram o modelo acusatório de audiência de instrução estabelecido pelo art. 212 do Código de Processo Penal.
Valemo-nos das lições do jurista gaúcho para apontar o equívoco de considerável parcela da doutrina e, principalmente, da jurisprudência (pois esta produz efeitos concretos na vida real), que legitimam a invasão de domicílio, sem ordem judicial, nas hipóteses de delito permanente.
Ou melhor, nos casos em que o delito é inicialmente apenas conjecturado e somente a posteriori confirmado, após a violação do domicílio.
Eis a situação rotineira: a polícia recebe uma ligação anônima, informando que, em determinado endereço, indivíduos estão praticando alguma atividade ilícita (p. ex., depósito de entorpecentes).
Diante da informação e sem colher quaisquer novos elementos que a confirmem ou, ao menos, indiquem sua veracidade, os agentes realizam a invasão e verificam a ocorrência do delito (então apenas suposto, imaginado).
Em casos como este, a jurisprudência majoritária confere legitimidade à invasão realizada pela polícia, pois, nos delitos permanentes, a situação de flagrante persiste enquanto não cessada a permanência (art. 303 do CPP).
Daí porque, mesmo se a realização do delito só for confirmada após a invasão, está será legítima, em razão da natureza permanente da infração praticada.
Será realmente correto esse entendimento?
A Constituição Federal, no inciso XI do art. 5º, estabelece que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Imaginemos a seguinte situação: o corpo de bombeiros recebe uma ligação anônima, noticiando uma explosão dentro de uma determinada residência. Ao chegarem ao endereço informado, os bombeiros não observam qualquer anormalidade indicativa da dita explosão (fumaça, fogo, movimentação na vizinhança etc.).
Nesse caso, a informação anônima, por si só, legitima o ingresso forçado no domicílio? Podem os agentes públicos arrombar a porta e forçar a entrada, mesmo sem a certeza da ocorrência do desastre? A única resposta possível é a negativa!
É de uma obviedade irritante que, nessa hipótese, deverão os agentes públicos diligenciar no sentido de apurar a veracidade da informação (p. ex., localizando algum morador ou buscando informações com os vizinhos).
Do contrário, nem um sossegado cochilo após o almoço estaria a salvo de ser interrompido pelo arrombamento da porta da frente.
E assim deve ser, visto que a Constituição diz que ninguém poderá ingressar na casa alheia sem o consentimento do morador, salvo em caso de desastre, e não em caso de suspeita de desastre.
O desastre deve ser antevisto; deve ser verificado com certeza. No exemplo dado, havendo fumaça, fogo etc., estará legitimado o ingresso na residência atingida, pois o desastre é evidente, antevisto pelos agentes.
Da mesma forma, o texto constitucional diz que ninguém poderá ingressar na casa alheia sem o consentimento do morador, salvo em caso de “flagrante delito”, e não em caso de suspeita de delito.
Por isso, assim como se dá nos casos que envolvem desastre, também o suposto delito deve ser antevisto, certo, confirmado, manifesto, não sendo legítima a invasão domiciliar fundada exclusivamente em denúncia anônima não confirmada por diligências posteriores. A mera suspeita do delito não legitima a violação do lar.
Alexandre Morais da ROSA esclarece a questão da seguinte forma:
Não basta, por exemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa “x”, bem como que “acharam” que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo comportamento do agente “parecia” que havia droga. É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do agente, quando movida pelo imaginário, mesmo confirmado posteriormente. A materialidade estará contaminada pelos frutos da árvore envenenada.
Recebida a notícia anônima, os agentes públicos deverão tomar providências para buscar a certeza da ocorrência do ilícito penal, ou seja, antever a prática do delito (p. ex., visualização do tráfico).
Somente diante da certeza da ocorrência do delito estarão legitimados a ingressas compulsoriamente no recinto. Não obtida a necessária certeza, mas elementos de prova suficientemente capazes de indicar a prática do delito (fumus comissi delicti), caberá à autoridade policial requerer o correspondente mandado de busca (art. 240, § 1º, do CPP)[2].
Exigências dessa ordem têm o objetivo de garantir que o texto constitucional (e o Estado Democrático de Direito) seja respeitado em seus exatos termos (“no caso de flagrante delito”, e não no caso de suspeita de delito), assim como a própria finalidade da regra que consiste em resguardar o lar como ambiente de proteção da intimidade e da vida privada do indivíduo contra intervenções arbitrárias do Estado.
Não se pode tolerar que meras suspeitas sirvam como motivo para a restrição da garantia fundamental da inviolabilidade do domicílio, sob pena de condicionar a proteção constitucional ao estado de ânimo do agente estatal (ou à capacidade de convencimento do informante anônimo) e transformar a exceção (violabilidade) em regra.
A interpretação dada pelos tribunais passa por cima da regra insculpida no dispositivo constitucional (“a casa é asilo inviolável do indivíduo”), a qual claramente – até pela forma bastante eloquente de sua redação – não admite seja o domicílio do cidadão violado em razão de suspeitas precariamente fundamentadas, mesmo que estas venham a se confirmar posteriormente.
Além de extrapolar os limites semânticos do texto constitucional, é evidentemente utilitarista, pois desconsidera a ilegalidade da violação do domicílio simplesmente para não inviabilizar as provas ilegalmente obtidas e garantir o resultado prático da persecução penal, concretizando a máxima antidemocrática de que os fins justificam os meios.
REFERÊNCIAS
STRECK, Lenio Luiz. Limites semânticos e sua importância na e para a democracia. Revista da AJURIS. Vol. 41, n. 135. 2014.
NOTAS
[1] Este texto adota o sentido de norma enquanto produto da interpretação do enunciado normativo. Nesse sentido, v. ÁVILA, Humberto Bergman. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
[2] Extremamente relevante a lição de Aury Lopes Jr., acerca dos limites semânticos do termo “fundadas razões” constante no § 1º do art. 240: “Deve o juiz exigir a demonstração do fumus comissi delicti, entendendo-se por tal, uma prova da autoria e da materialidade com suficiente lastro fático para legitimar tão invasiva medida estatal. A busca domiciliar deve estar previamente legitimada pela prova colhida e não ser o primeiro instrumento utilizado”.