(Ir)responsabilidade de imprensa x atores jurídicos: façamos a mea culpa?
(Ir)responsabilidade de imprensa x atores jurídicos: façamos a mea culpa?
Por Melani Feldmann e Juliana Leopardo
O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação (artigo 4º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros). A liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão (Inciso III do artigo 2º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros).
Daqueles direitos fundamentais constitucionalmente garantidos – informação e liberdade de expressão – sobressai a mídia com sua principal função social. Eleger temas, métodos de abordagem e áreas de “interesse” pautam um exercício mercadológico, afinal, é a lucratividade mantém “vivas” as redações. Ao passo que os meios de comunicação, agindo como condutores de discurso, direcionam as “preocupações” dos indivíduos.
– “Eu não ligo mais a televisão, só se vê tragédia e desgraça”.
Falácia! Os aparelhos estão conectados justamente para “atualizar” o almanaque de sangue e barbárie, via de regra apenas pela manchete. CASARA (2018, p. 29) refere que “o entretenimento tornou-se uma forma de dominação, que aniquila o tempo para a reflexão, altera o subjetivismo e produz a domesticação da audiência”.
Forma-se, daí, o roteiro do espetáculo, no qual a acusação define o gênero e o juiz endossa esse cenário como “verdade”, reduzindo-se a trama no discurso do bem contra o mal. Onde se encaixam aquelas premissas do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros? Entra em cena o instituto da culpa concorrente (quando o agente e a vítima concomitantemente colaboraram para o resultado lesivo): alguém (des)informa os jornalistas, alguém indica os desdobramentos do caso, alguém fornece os parâmetros legais, quem? Exatamente, os juristas! Juízes, Promotores de Justiça, Advogados, Delegados de Polícia, etc.
Na era do Processo Penal Nescafé (ROSA; KHALED JR., 2015, p. 33) – basta adicionar água e pronto – acusa-se, condena-se e executa-se em segundos, eis que a sociedade não dispõe de tempo nem paciência para aguardar o julgamento moroso do Poder Judiciário. O respeito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão (art. 6º, inciso VIII, do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros) cedem espaço para o linchamento em praça pública, e todas as técnicas inquisitórias que juramos ter deixado para trás.
Em nome do interesse do (respeitável) público são engendrados truques e improvisações aniquiladores de seres humanos, dá-se voz à vontade das maiorias de ocasião, vidas são destruídas em prol de elemento cênico dispensável: dignidade da pessoa. Instrumentalizados pelo espetáculo, os atores jurídicos alimentam monstros que tanto abominam, mas agem sob o manto de uma “causa maior”, explorando tradições autoritárias e preconceitos públicos para angariar simpatias ou produzir rejeições.
Como se pretende legitimar a apuração e punição de ilícitos se a atividade estatal imiscuída nesse papel é caracterizada por violar leis? Satisfaz-se a plateia com o sacrifício de direitos e garantias fundamentais. Irmanados – mídia e atores jurídicos – criam o processo (anti)democrático de formação da opinião pública, deformam a realidade social, recorrem ao medo social, manipulam fatos e outras formas de criar consenso.
Sob o enfoque a opinião pública(da), confunde-se liberdade com libertinagem de imprensa, lógica na qual limites se tornam invisíveis diante do objetivo de cativar a audiência com a venda de visões de mundo seletivas. Os condenados pelo Processo Penal instantâneo jamais recuperarão o status quo ante, sobretudo pelo fato de que acabam sendo vítimas do Sistema Judiciário de cabresto, avalizador daquela hipótese inicial – presunção de culpa (ao arrepio do postulado constitucional do artigo 5º, inciso LVI) –, sem contar que as absolvições não estampam capas nem tabloides.
Façamos a mea culpa?
Quais são os frutos gerados do casamento infiel entre a mídia e os operadores do direito? É interesse da sociedade perpetuar injustiças? Os agentes judiciais fomentadores da imprensa ocupam cargos que visam “fama” e “popularidade” ou seus papéis se destinam à promoção de uma sociedade racional e civilizada? Quais são os benefícios sociais da criminalização em massa?
Façamos a mea-culpa? Trata-se de uma relação incestuosa com interesses mútuos – lucratividade x prestígio – que se retroalimenta da política do pão e circo, em que a arena é representada por uma sociedade doente, ávida de sangue e morte.
REFERÊNCIAS
CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do espetáculo. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 29.
ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR., Salah H. In dubio pro hell, profanando o sistema penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 33.
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