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O que seria da Criminologia se não fosse Janina Bauman?

O que seria da Criminologia se não fosse Janina Bauman?

Durante a guerra aprendi uma verdade que geralmente preferimos não enunciar: que o mais brutal da crueldade é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E que a luta mais árdua de todas é permanecer humano em condições desumanas. (Janina Bauman)

A obra Inverno pela Manhã (1986), de Janina Bauman, nos faz ensaiar uma pergunta que em si possui sua resposta e sua afirmação: O que seria da criminologia não fosse Janina? Mais precisamente, da atual fase de estudos criminológicos com a qual hoje nos deparamos.

Seu escrito, tal qual o famoso diário que Anne Frank nos deixou como testemunho de seu sofrimento, foi o estopim para a ascensão da Modernidade Líquida, com a qual seu marido Zygmunt Bauman nos agraciou com tantos questionamentos e com a visão de uma realidade enjaulada em sua própria negação: na aparência e na dissimulação.

Para Janina Bauman, a vida nos guetos seguiu pelos mesmos caminhos de todos os outros judeus na época, todavia, a dor e a aflição, o medo e a angustia pela perda da liberdade trouxeram consigo um sentimento que revelou a ela inúmeras outras formas de pensar, compreender e examinar situações de conflito e extrema tensão.

Inverno pela manhã pode não ser apenas um conto baseado em uma história real e escabrosa da humanidade, entretanto, em forma de diário demonstra a realidade vivida sob a perspectiva de uma jovem moça nos guetos que questionava a vida e os motivos dos acontecimentos. O receio de entrar em caminhões do exército alemão sob os gritos dos militares, sendo levada para caminhos incertos e nunca mais retornar era pulsante. Por esse motivo, o livro é mais uma adaptação dos relatos escritos sob pressão de uma jovem vítima da segregação e do ódio que um conto ou uma história.

Seu relato impressionante, tocante e carismático incentivou criminólogos/sociólogos como Nils Christie e David Garland, iluminou filósofos como Michael Sandel e o mais enternecedor: criou em seu conceito mais amplo de humanidade e sua luta pela razão um escape dos atrozes sofrimentos da lascívia segregação numa forma de continuar e aprimorar os melhores intentos em prol da vida humana. Destarte, não se deixou abalar nem embrutecer, construindo no pós-guerra uma sólida carreira de estudos que compreendem a tolerância e a aceitação das diferentes raças, credos e desígnios humanos.

Bauman, inspirado por sua esposa e sua história, escreveu Modernidade e Holocausto em 1989, Globalização: As Consequências Humanas (1998) e a obra Modernidade Liquida, de 2000. Numa de suas mais celebres frases, Bauman traz as consequências da falta da razão, que afligiu a muitos o sofrimento: “As diferenças nascem quando a razão não está inteiramente desperta ou voltou a adormecer. ” Essa fase que remonta o sono da razão, que como Goya já nos dizia; cria monstros, Janina viveu, ou melhor, sobreviveu.

Permanecer em condições humanas, mesmo após diversos atentados contra a dignidade e a vivência, em uma tendenciosa distinção de “uns mais humanos que outros”, e por isso, mais merecedores, é deveras uma missão para poucos.

Essa visão de Janine Bauman provocou Nils Christie a pensar questões criminológicas e a mais influenciadora tortura do direito das penas: o encarceramento. Para o autor, uma sociedade que muito encarcera, ou seja, onde seus números de pessoas presas por delitos diversos, entre eles alguns que se destacam por sua ínfima relação aos objetos de tutela do direito penal, só pode ser uma sociedade que cria a sua própria negação, dentro dos intramuros do cárcere.

Dessa maneira, segundo o autor norueguês, o cárcere como opção para tudo e para todos significa a dialética entre a sociedade livre e a sociedade porvir, uma vez que tanto se prende pessoas que estarão de volta à mesma sociedade. A possibilidade dessas pessoas deixarem o suplício e atentar contra os moldes da civilização conhecida por eles é tremendo, formando assim, ao invés de novos cidadãos, novos inimigos e vilões, dentro das bordas da cidade.

Tanto Bauman e Christie concordam que a falta de uma racionalidade embutida nas conjunturas das instituições e dos atos de todos é a real formadora de um abismo o qual todos, sem a razão, estamos fadados. Para Christie, numa síntese extremamente resumida, as estruturas de uma sociedade contemporânea devem pautar-se em uma visão de comunidade, num comum conjunto de tradicionalidades especificas que somente ganham força na discussão e na união dos seus viventes.

Todavia, Bauman interpreta a formação de uma nova onda de viver a vida em meio a uma constante globalização que entende o Estado a partir de suas forças econômicas externas, ou seja, de seus idealizadores, tais quais o mercado, o consumo e a diversidade entre os iguais e medo dos desiguais, grosso modo.

É comum em situações de tensão e situações pós-traumáticas as pessoas unirem suas forças a impelir o objeto causador da aflição. Janina Bauman fez exatamente o contrário, ela decidiu conviver com sua dor ao se deparar com o passado em inúmeras convenções sobre o tema, onde veio a incentivar a criação de debates entre todos aqueles influenciados pela tragédia da guerra.

Um exímio pensamento baumaniano é o retorno da ágora, que significa, os debates e discussões abertos a todos, em uma forma de ouvir a todos, trazendo as assembleias próximas ao cidadão e que este tenha sua voz ouvida. Janina foi responsável por muitas das ideias e grandes passagens dos livros do autor, pois criou, dentro de sua própria dor, a sua ágora particular, pois permaneceu “humana em condições desumanas”.

Por isso a questão, o que seria da criminologia crítica e sociológica dos dias hodiernos não fosse a força de Janina e a influência que causou em seu marido Bauman e em criminólogos, sociólogos e filósofos mundo afora, foi respondida.

É certo o ditado antigo e comprovamos mais uma vez com este texto: Junto a um grande homem, sempre há uma grande mulher.


REFERÊNCIA

BAUMAN, Janina. Inverno na manhã. São Paulo: Zahar, 2005.


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Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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