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Jogadores do bom combate (Parte II)

Dando continuidade ao nosso causo, em quê se transformou a minha primeira audiência, preciso retomar a partir do ponto das irrefratáveis contradições nos depoimentos policiais. Não sem antes, fazer uma breve reflexão.

Em nosso país, e é natural até certo ponto que assim o seja, os agentes do Estado possuem uma fé pública, de credibilidade inquestionável, até que se prove o contrário. Acontece que o contrário, diante muitas vezes do modus operandi das nossas agências (de controle, em especial) não nos permite esse “até que se prove o contrário”.

Como se diz no Processo Civil (sem, de qualquer forma, querer retirar a importância da autonomia de uma Teoria Geral do Processo Penal), apenas como uma analogia pertinente temos aqui uma “prova diabólica”. Diante dos fatos narrados no texto anterior, pergunto, pois, como provar o contrário? O fato de – quase – nunca serem arrolados populares, que presenciaram a abordagem policial e as prisões dela decorrente, como testemunhas de acusação, nos faz suspeitar dessa razão-de-ser.

Voltemos, agora, ao nosso caso concreto. As contradições acima mencionadas foram fartas e diversificadas, porém, para ilustrar didaticamente o descalabro que foi essa instrução, separei as principais (e a conclusão vem a reboque):

1º) a 1ª testemunha (APC 01) afirma que o 2º acusado (motorista do carro em que meu cliente estava) portava uma “bolsa preta”; a 2ª testemunha (APC 02) afirmou tratar-se de uma “sacola plástica”; o condutor, 3ª testemunha (APC 03), afirmou que se tratava de uma “sacola de loja, de papel”. O MM Juiz, na sentença então guerreada relatou que “O (APC 02) contou que: […] a droga estava dentro do isopor, no carro do (3º acusado); […] uma sacola tipo de loja de roupas foi usada; não sabe por que a droga foi encaminhada no ITEP dentro da sacola; (1º acusado, meu cliente) permaneceu o tempo todo dentro do carro […]”.

2º) o APC 01, contradizendo o que havia dito anteriormente em seu depoimento prestado na Delegacia, afirma que acredita que o (2º acusado) havia estado ali para “FORNECER” ao (3º acusado) a droga apreendida, fato que foi levado a crer em virtude “da droga estar em temperatura ambiente”; em seguida, o 1º CONDUTOR, APC 03, afirmou que acredita que o (2º acusado) iria “RECEBER” a droga, fato que foi levado a crer em razão de que “a droga estava bastante gelada”.

3º) todos os APCs ouvidos afirmaram que não sabiam, ou não se lembravam, quem teria levado a droga do local do flagrante até a Delegacia.

4º) todos os APCs ouvidos afirmaram com veemência que a droga foi encontrada dentro do Isopor, que estava no carro do (3º acusado), enquanto a bolsa/sacola (plástica ou de papel) preta foi encontrada no interior do CORSA CLASSIC, em poder do  (2º acusado); no entanto, à fl. 30 dos autos, observa-se o Laudo de Constatação do ITEP que, verbis, afirma: “o material recebido estava embalado em uma sacola de papel de cor preta, com a seguinte inscrição SKYLER, aberta…”.

O flagrante forjado é aquele que acontece em razão de interesses do agente provocador, quando autoridade ou terceiro coloca alguém intencionalmente em situação de flagrante delito, para com isso impor-lhe uma situação de gravame. Nesse sentido, tem-se por totalmente nula a prisão decorrente desta modalidade de flagrante.

Tal modalidade de flagrância, por óbvio, não é aceito pelo nosso ordenamento, vez que ocorre em face de adulteração ou falsificação da cena do suposto crime. Temos, pois, que a pessoa a qual sofre o flagrante se transforma, na verdade, em uma vítima direta do agente provocador.

O flagrante forjado, reconhecidamente[1], é muito comum nos crimes referentes às substâncias entorpecentes, quando policiais criam provas inexistentes, colocando, por exemplo, no bolso de quem é revistado ou em sua residência, ou ainda adulterando elementos da cena do crime a fim de justificar uma plausível versão oficial.

Tal artimanha policial, pois, não pode ser encarada como se tivesse único e exclusivo objetivo satisfazer interesse processual. Pode, sim, almejar uma satisfação imediata de interesses pessoais, como por exemplo, quando se exerce uma extorsão por meio da ameaça de prender o sujeito que sofre diante de tal situação.

Por outro lado, e tal versão tornou-se muito mais palatável aos nossos sentidos, há um interesse eminentemente profissional, de que a diligência ou campana empreendida, resulte em um procedimento exitoso, o que na linguagem policial pode ser traduzido com a prisão e posterior condenação dos supostos criminosos.

Tem-se, pois, que foi de interesse sim dos policiais o presente caso de flagrante forjado, uma vez que assim agiram para legitimar a prisão realizada, contra o qual não conseguiram provar o envolvimento dos outros dois acusados com a prática criminosa: pegando a droga que estava dentro de um isopor em outro veículo, e a introduzindo em uma sacola de roupa encontrada dentro do interior do veículo em que estava o meu cliente (isso pôde ser observado no depoimento dos acusados, no depoimentos dos condutores perante a autoridade policial e perante o MM Juízo responsável, e nos autos do Inquérito Policial atinente).

Se não bastassem todas as contradições percebidas em TODOS os depoimentos, a droga (que ninguém sabe, ou se lembra quem levou) foi acondicionada em um local onde não foi encontrada, tendo sido plantada neste local (sacola preta); o que indiscutivelmente, é o único elemento probatório que ligou o 1º e 2º acusados ao flagrante.

Nesse dia, todas essas questões (e outras que o espaço aqui não coube reproduzir) foram sustentadas em Alegações Finais orais (apesar do descaso que é o Juiz se levantar e entrar em seu gabinete logo após o início da fala dos advogados, retornando instantes após a conclusão destes, com o decisum já pronto, impresso e assinado).

Saí apreensivo da sala de audiências, sem saber se aquilo teria sido uma mensagem de incentivo ou de repreensão pelo inevitável acirramento de ânimos que houve durante a instrução. A frustração e indignação pelo desfecho do caso me fez trabalhar quase que ininterruptamente, até que ao final de 72 horas eu já estava com as razões recursais prontas.

Duas semanas após, voltei àquela arena, com os mesmos jogadores (julgador e promotor), em um caso mais ameno… O clima estava o melhor possível, risadas descontraídas e assim foi-se, apesar de eu estar receoso em saber se ali havia algum ressentimento pelos meus posicionamentos talvez defendidos com muita veemência. Aquilo não era o que principalmente importava.

Eu havia defendido com tudo que podia os interesses do meu cliente; mas, sempre com educação e gentileza em todas as outras oportunidades, inclusive vindouras. Naquele dia eu pude ver, nessa área, como é bom jogar[2] o bom combate.

NOTAS

[1] Conforme: GONÇALVES, Everaldo Baptista. DAS NULIDADES NA PRISÃO EM FLAGRANTE À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO E CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI

[2] Aqui se adota a perspectiva vislumbrada por Alexandre Morais da Rosa, em seu Guia Compacto do Processo Penal de Conforme a Teoria dos Jogos. Recomendo fortemente a leitura desse livro, que inclusive eu tive a oportunidade de ler em sua primeira edição pouco depois de ocorridos os fatos descritos nesse texto e posso afirmar: realmente é imprescindível estar municiado com todo o aparato instrumental da Teoria dos Jogos para enfrentar realisticamente o Processo Penal tal como ele verdadeiramente é.

Gabriel Bulhões

Advogado. Presidente da Comissão de Advogados Criminalistas da OAB/RN. Professor de Processo Penal.

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