Por que precisamos do juiz de garantias?
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Em tempos em que as discussões sobre as reformas do nosso Código de Processo Penal se reacendem com uma série de audiências públicas e debates na Câmara dos Deputados, precisamos fazer algumas considerações.
É sabido que nossa legislação data de 1941, gerada em um berço fascista, inspirada nas ideias totalitárias do Código Rocco de 1930 da Itália, se deu em uma época social, econômica e politicamente muito distinta da que hoje vivemos.
Pois a democracia inaugurada com a Constituição de 1988 trouxe novos valores e anseios para o modelo de país que se desejava, mas o nosso Código de Processo Penal seguiu em vigor, firme e forte.
Ao longo destes quase 80 anos de vigência, ele sofreu diversas e pontuais alterações que não representaram um rompimento substancial com a cultura que o inspirou, o que fez que em 2009 o Senado Federal nomeasse uma Comissão de Juristas para elaborar um novo Código de Processo Penal.
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Esta discussão oscila, mas ainda não foi totalmente soterrada, o que exige da comunidade jurídica uma atuação destacada e comprometida para a luta pelas reformas buscadas.
O momento não é dos melhores para se buscar mudanças em uma legislação processual que é vendida como benéfica demais aos Acusados e como geradora de impunidades.
Por isto, a atenção para que não sejam realizadas reformas distintas daquelas que ensejaram o referido projeto.
Assim, penso que a figura do juiz de garantias é marco fundamental para esta reforma. Abordo este tema com muito mais profundidade no livro publicado ano passado (OLIVEIRA, 2016), fruto de minha dissertação de Mestrado em Ciências Criminais pela PUC-RS em 2013, com uma série de atualizações e complementações.
Propor e aceitar mudanças é mais do que necessário no nosso atual estágio. Mas, para isto, mais do que a lei, é necessário mudar a cultura, romper com antigas crenças, livrar-nos de grilhões inquisitoriais que ainda se fazem presentes e estão a segregar um elevadíssimo número de juristas em tempos não condizentes com uma sociedade evoluída.
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De acordo com a proposta, o juiz das garantias (nomenclatura usada no projeto) seria um magistrado designado especificamente para atuar na fase da investigação preliminar, tendo a sua competência encerrada com o oferecimento da denúncia e, com isto, tornando-se impedido de atuar no processo, seguindo uma orientação mundial neste sentido, inclusive conforme decidido por Cortes Internacionais.
Talvez pela polêmica nomenclatura, talvez pela audaciosa proposta de mudança ou, ainda, pelo reconhecimento de uma falha notável, mas que muitos tentam não enxergar em nosso sistema, este instituto tornou-se um dos, senão o maior, responsável pelas críticas sofridas pelo projeto de reforma do Código.
Não por outro motivo que fora considerado pelos próprios membros da comissão como a alteração mais relevante, pois, segundo SILVEIRA (2009, p. 92):
sem o juiz das garantias (ou qualquer outro nome ou forma que se dê a especialização de funções e separação física entre o juiz da investigação e o juiz do processo), temos a impressão de que o Código já nasceria empoeirado, como que enclausurado no séc. XX.
Portanto, os poderes instrutórios, o controle sobre a qualidade do inquérito policial, a determinação de medidas de ofício, tudo isto, está autorizado no atual modelo vigente em relação ao Magistrado que atua na fase de investigação, ainda que seja em localidade que possuam Varas de Inquérito, que são juízes destinados só aos inquéritos policiais.
O juiz de garantias, vem com outra atuação, a serviço de uma outra cultura e com outro propósito.
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Com isto já se percebe que aos olhos da Comissão de Juristas, a implementação do Juiz de, ou das, Garantias era imprescindível para justificar a finalidade do projeto, qual seja: adequar o nosso Código de Processo Penal à nossa Ordem Constitucional vigente.
Muitas foram e seguem sendo as críticas feitas às reformas propostas e, em especial, ao juiz de garantias.
As principais críticas giram em dois sentidos: sendo o primeiro a desnecessidade, porque já há juízes que garantem o direito do investigado; e segundo, em virtude do Poder Judiciário não possuir condições orçamentárias para assegurar ao menos dois juízes em cada comarca (ZANOIDE DE MORAES, 2010, p. 22).
Pois bem, a primeira crítica, muitas vezes, é feita por magistrados que se consideram plenamente capazes de atuar em fases distintas sem que, com isto, tenham a sua imparcialidade afetada e que, não raramente, pessoalizam a crítica, considerando a proposta ofensiva à Magistratura.
Ora, não se trata de duvidar da idoneidade de juízes, mas, tão somente, exigir a garantia de uma estrutura jurídica na qual não sejamos obrigados a crer nas qualidades e virtudes pessoais de um indivíduo. Dessa forma, por ter uma atuação que o coloque na possibilidade de não ser imparcial, deve ser afastado, para que não corramos o risco da parcialidade.
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O juiz que atua no inquérito é informado quase que exclusivamente pela voz da acusação e já gera um pré-juízo sobre os fatos a serem discutidos no processo. Se ele acaba por deferir medidas cautelares é mais grave ainda, pois já analisou a fundo os elementos investigatórios. Já dizia GARAPON (1997, p. 317):
aquele que julga nunca está completamente isento de juízos antecipados. Assim, paradoxalmente, é menos difícil para ele tomar uma decisão do que alterá-la!
A discussão sobre a impossibilidade orçamentária é válida, mas precisamos de vontade política para nos adequarmos a uma realidade que pretendemos mudar, por isto o prazo para implementação deve vir de forma clara, permitindo um tempo para adequação.
Temos muitas comarcas de um único juiz, no Rio Grande do Sul, de 181 Comarcas, 64 possuem apenas um juiz. Mas, destas 64, apenas 4 delas possuem a comarca mais próxima com mais de 100 km de distância, sendo, a imensa maioria com distâncias muito próximas, o que permitiria que os juízes atuassem de maneira “cruzada”, ou seja, sendo juiz de garantia na comarca em que não será o juiz do processo.
Não será fácil, romper culturas enraizadas nunca é e, por isso, precisamos de medidas drásticas. Não podemos seguir achando que “no Brasil isto não funcionará”, de modo semelhante ao que já nos adverte ZAFFARONI (1995, p. 26) sobre:
absurdos folclorismos nacionalistas, a invocação de tradições inexistentes e o remansoso argumento racista de que nossos povos não estão preparados para instituições democráticas.
Portanto, uma era democrática necessita de uma legislação que a acompanhe para que não sigamos com as promessas incumpridas de nossa Constituição embasadas legalmente.
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Valendo-me da definição da própria Comissão de Juristas, na exposição de motivos do anteprojeto, sobre as dificuldades de implementação do juiz das garantias, acreditamos que:
os proveitos que certamente serão alcançados justificarão plenamente os esforços nessa direção.
REFERÊNCIAS
GARAPON, Antoine. O Bem Julgar: Ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
OLIVEIRA, Daniel Kessler de. A Atuação do Julgador no Processo Constitucional: O juiz de garantias como um redutor de danos da fase de investigação preliminar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. O Código, as cautelares e o juiz das garantias. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, v.46, n. 183, p. 77-93, jul./set. 2009.
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ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Quem tem medo do Juiz das Garantias. In: Boletim IBCCRIM, São Paulo, v.18, 213, ed.esp., p. 21-23, ago. 2010.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995.
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