Juízes odeiam decidir no rito do júri. Ou não?
Juízes odeiam decidir no rito do júri. Ou não?
Antes que alguém me indague, o título desse texto não é resultado de uma pesquisa ou alguma estatística.
Trata-se apenas de um desabafo em razão das várias decisões de pronúncia proferidas diariamente em que os Juízes mencionam que determinada matéria “não pode ser analisada nesse momento, porque deve ser levada aos jurados, Juízes naturais dos crimes dolosos contra a vida”.
Aliás, não há muitas variações desse trecho, como se os Magistrados utilizassem modelos parecidos de decisões de pronúncia.
Utilizando esse entendimento, a decisão de pronúncia, que deveria ser um filtro, passa a ser apenas uma formalidade em que se aceita integralmente a denúncia, deixando expresso – até para evitar o excesso de linguagem – que o Juiz não fez uma análise profunda das alegações defensivas.
Nesse diapasão, os Juízes deixam de decidir várias matérias, submetendo-as aos jurados sem qualquer constrangimento (como se preferissem transferir a responsabilidade aos jurados).
Infelizmente, a jurisprudência aprova essa “omissão” na apreciação de teses defensivas na fase da pronúncia. O Superior Tribunal de Justiça concorda com essa indevida transferência de responsabilidade aos jurados em vários casos.
Quanto à análise do dolo e da culpa, o STJ já decidiu:
(…) 1. O deslinde da controvérsia sobre o elemento subjetivo do crime, especificamente, se o acusado atuou com dolo eventual ou culpa consciente, fica reservado ao Tribunal do Juri, juiz natural da causa, na qual a defesa poderá exercer amplamente a tese contrária à imputação penal. (…) (STJ, Quinta Turma, AgRg no REsp 1417752/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 13/03/2018)
Em relação à desclassificação, o STJ também entende que, em caso de dúvida (se foi tentativa de homicídio ou lesão corporal, por exemplo), deve-se remeter ao tribunal do júri:
(…) 1. O princípio do in dubio pro societate incide na fase da pronúncia, devendo as dúvidas serem resolvidas pelo Tribunal do Júri. 2. Nos termos do art. 410 do Código de Processo Penal, o magistrado somente desclassificará a infração penal quando a acusação de crime doloso contra a vida for manifestamente inadmissível, o que não ocorreu no caso em apreço. (…) (STJ, Quinta Turma, REsp 775062/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/03/2008)
No mesmo sentido, raramente as qualificadoras são afastadas na decisão de pronúncia:
(…) 1. A qualificadora do crime de homicídio deve constar da pronúncia, salvo quando manifestamente improcedente. 2. Na fase preliminar, não cabe ao juiz exaurir a matéria para julgar o réu, nem valorar as provas produzidas, sob pena de influenciar na ulterior convicção dos jurados. (…) (STJ, Quinta Turma, REsp 964.576/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 10/09/2009)
Por fim, é raro que os juízes reconheçam alguma excludente de ilicitude e deixem de submeter o caso aos jurados:
(…) “ressalte-se que não havendo prova cabal e irrefutável da prática da conduta sob legítima defesa, caberá ao Conselho de Sentença, mediante a apreciação de todo o acervo fático probatório, decidir acerca da sua ocorrência ou não, sob pena de indevida usurpação da competência constitucional do Tribunal do Júri para julgar os crimes contra a vida” (fls. 288/289), devendo, portanto, ser mantida por seus próprios termos. (…) (STJ, Quinta Turma, AgRg nos EDcl no AREsp 58.906/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 11/03/2014)
Assim, se é caso de condenação (com ou sem as qualificadoras), absolvição ou desclassificação, para os Juízes, quem deve decidir é o júri.
Entretanto, depois de uma condenação, a “canetada” quase sempre é “violenta”. Já vi Juízes que sempre fixavam penas baixas (partindo da pena mínima e com poucas considerações negativas na primeira fase da dosimetria da pena), mas, na sessão do júri, após uma condenação, fixavam sanções desproporcionais.
Assim, após uma confirmação, pelos jurados, de que o réu deve ser condenado, parece que toda a timidez na fase da pronúncia se transforma em uma coragem para fixar uma “pena exemplar”.
Seria interessante analisar se o fator “público” pressiona os Juízes a fixarem penas mais altas no júri. Explico: os Juízes raramente proferem sentenças condenatórias em audiência (há exceções). Via de regra, na audiência, apenas proferem sentenças absolutórias, quase sempre após o pedido de absolvição feito pelo Ministério Público.
No gabinete, proferem sentenças condenatórias e realizam a dosimetria da pena sem pressão pública. As sentenças apenas são publicadas e as partes são intimadas, sem olhares atentos no momento da leitura da dosimetria da pena, tampouco havendo a observação do Juiz quanto às reações dos ouvintes.
Por outro lado, no júri, há, no mínimo, jurados, acusação, defesa e réu. Se o réu está preso, também comparecem os agentes penitenciários que o transportaram até o plenário. Em caso de tentativa de homicídio, também é comum a presença da vítima. Se o homicídio é consumado, os familiares da vítima presenciam a leitura da sentença. Por fim, quase sempre há muitos estudantes (que precisam de horas complementares) e populares.
Destarte, no momento da leitura da sentença, logo depois da quesitação dos jurados, todos estão ansiosos quanto ao “número” que será dito, isto é, a pena imposta ao acusado.
É certo, porém, que muitos Juízes preparam a dosimetria da pena antes do júri ou durante os debates, quando os holofotes estão na acusação e na defesa. De qualquer forma, sabem que a leitura da sentença (especificamente da dosimetria da pena) será na frente de um público que, não raramente, deseja uma condenação alta.
Assim, não se pode negar que parece haver uma preocupação dos Magistrados quanto à dosimetria da pena, como se não quisessem decepcionar os expectadores com uma pena baixa após a condenação pelos jurados.
Em suma, há uma timidez na decisão de pronúncia, remetendo todas as matérias para os jurados (inclusive quando seria caso evidente de impronúncia ou absolvição sumária), mas, após a quesitação dos jurados no sentido de que o réu deve ser condenado, a dosimetria da pena parece ser mais rigorosa do que em outros casos em que a sentença é proferida no gabinete.