Justiça brasileira x novas tecnologias: até quando?
Por Dayane Fanti Tangerino
Na data de ontem, 01/03/2016, assistimos à prisão do Vice-Presidente do Facebook na América Latina, Diego Dzodan, determinada pela Justiça de Sergipe, sob o fundamento de “desobediência quanto à entrega de dados para a Justiça sobre um caso envolvendo o serviço do WhatsApp para tráfico de drogas”.
A prisão do vice-presidente da empresa, segundo o juiz da Vara Criminal de Lagarto (SE), Marcel Maia Montalvão (veja aqui), que assina a ordem de prisão, se fundamentou no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 12.850/2013 que preceitua que nas mesmas penas do caput, qual seja, reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. Tal legislação foi aplicada ao caso porque, segundo o Tribunal de Justiça de Sergipe, se trata de um processo de tráfico de drogas interestadual em que a PF solicitou a quebra de sigilo de mensagens do aplicativo WhatsApp.
Sabemos que esta não é a primeira vez que a Justiça intervém de forma extrema no funcionamento de empresas de tecnologias. Alguns casos famosos podem ser lembrados para aquecer a reflexão: em 2007, a retirada do ar da rede social Youtube, após a decisão judicial de procedência do pedido da apresentadora Daniela Cicarelli, que buscava evitar que as cenas íntimas dela com o então namorado em uma praia da Espanha se viralizassem pela web; a retirada do ar da rede social Facebook, em agosto de 2012, devido a conflito eleitoral, tendo a ordem sido exarada após a empresa descumprir a determinação de retirar do ar uma página com material depreciativo sobre um vereador candidato a reeleição em uma cidade do Estado de Santa Catarina; ainda em 2012, um Juiz da Paraíba determinou a prisão do executivo da Google no Brasil pelo fato de que a empresa se omitia em cumprir ordem de retirada do ar de compartilhamentos de um vídeo contra um candidato à Prefeitura de Campina Grande; no mesmo ano de 2012, o diretor-geral da Google foi detido pela Polícia Federal sob suspeita de desobediência, ao se descumprir ordem judicial de retirada do ar dos vídeos com ataques ao candidato a prefeito de Campo Grande; em 2015 foi o vez do WhatsApp se ver bloqueado em todo o Brasil por ordem de um Juiz do Piauí que tinha por objetivo forçar a rede social a colaborar com as investigações de casos envolvendo pedofilia e, por fim, novamente o WhatsApp, recentemente, em dezembro do ano passado, 2015, fora bloqueado por ordem de uma Juíza de São Bernardo do Campo (SP), após a empresa negar-se a quebrar o sigilo de mensagens trocadas por meio de investigados.
Não obstante muitos analisaram o caso e emitiram suas opiniões, suas revoltas, seus rechaços e mesmo suas concordâncias com a ação policial e a decisão judicial, entendemos por bem trazer os “três lados da coisa”, ou seja, apresentar ao leitor os argumentos favoráveis à prisão, os contrários e, ainda, a versão do próprio Facebook, para que, cada um, por si mesmo, forme sua convicção. Vejamos:
Uma defensora da posição adotada pela Justiça é a advogada e professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo, Maristela Basso, que afirma que a proteção de dados é a regra, mas que tais dados podem ser revelados por decisão judicial e que os usuários do aplicativo devem ter em mente que a Justiça pode requisitá-los. Ademais, ressalta, ainda que quem administra o aplicativo deve manter os dados para o caso de a Justiça vir a requisitá-los, lembrando que, no Brasil, o que vige é o Marco Civil da Internet que determina que os dados sejam guardados e revelados em caso de ordem judicial, concluindo que as empresa que estão no Brasil devem seguir essa regra, ou seja, seguir as lei do País.
Por outro lado, temos aqueles advogados mais ligados à área tecnológica que discordam dessa posição, repudiando a prisão e afirmando que a Justiça não tem agido muito bem nestes casos envolvendo tecnologia. Adriano Mendes, advogado especialista em direito digital, ressalta que, do ponto de vista técnico, se os servidores estão em outro País e o Brasil é signatário de acordos internacionais como, por exemplo, o MLAT (veja aqui), as ordens policiais deveriam ser enviadas através deste procedimento ao exterior para serem atendidas, ao invés de serem expedidas e enviadas aos representantes do Facebook no Brasil.
Ouvido o WhatsApp, argumentam seus representantes que tais “conflitos” judiciais ocorrem por, basicamente, duas razões, que denotam o desconhecimento técnico de nosso Judiciário acerca das questões tecnológicas que lhes são submetidas: primeiro deve ficar claro que o WhatsApp não armazena os dados de conversa dos usuários em seus servidores, sendo que tais dados são somente mantidos nos smartphones das pessoas (lembrando, inclusive, para reforçar o argumento, que, por exemplo, a versão do aplicativo para computadores – WhatsApp Web – requer que o aparelho móvel esteja por perto), sendo que a empresa apenas mantém as mensagens enquanto estão sendo transmitidas, restando inexistentes para a empresa após sua entrega, permanecendo, não obstante, nos aparelhos dos usuários; em segundo lugar, ressaltam que o WhatsApp não tem sucursal no Brasil, o que, por este simples fato, não torna o Facebook responsável pelo WhatsApp, já que são duas empresas independentes, especialmente no seu formato de operacionalização dos serviços, afirmando que as ordens judiciais, para serem cumpridas, precisam ser devidamente comunicadas à empresa por via de cooperação internacional com os Estados Unidos, ressalvando, derradeiramente que, nos termos de serviço do aplicativo os dados de conversas entre usuários são protegidos, sendo certo que esta sistemática de não manter os dados armazenados em seus servidores e sim apenas nos aparelhos dos usuários é uma forma de garantir que, caso haja um vazamento, as informações permaneçam protegidas nos smartphones das pessoas, afirmando que estão criptografando todo o tráfego de dados na troca de mensagens dos usuários do WhatsApp.
Ouvidos “triplos os lados” podemos extrair de tudo isso uma coisa determinante para o bom andamento da Justiça: os Magistrados, não obstante sua imensa vontade de ver resolvido o caso posto a seu julgamento, por vezes, “patinam” ou “se enroscam” nas questões técnicas que envolvem os mesmo, em especial quando os casos sub judice tratam de temas afetos às novas tecnologias da informação e comunicação, o que revela que precisamos admitir que não sabemos tudo e que, sim, precisamos de técnicos, dos mais variados ramos e das mais diversas especialidades atuando ao lado do Magistrado para a consecução de um processo mais estruturado e de uma justiça mais lídima.
Talvez se faça urgente uma mudança da cultura judiciária – e jurídica –, que deve, necessariamente, passar também por uma mudança normativa, a exemplo do que já se pode ver no texto do novo Código Processual Civil, que trará ao processo civil, em seu artigo 322, a figura do amicus curiae* que deverá, exponencialmente, reduzir as dificuldades técnicas do Magistrado e auxiliar sobremaneira na busca da verdade real.
Talvez seja chegado o tempo de o processo penal, o direito penal e, especialmente os operadores do Direito: advogados, Juízes, Desembargadores, Promotores de Justiça, servidores em geral, enfim, todos aqueles envolvidos nesta nobre área do Direito, curvarem-se frente a sua ignorância para que possamos dar o primeiro e necessário passo em busca de uma reformulação do seara penal para atender as demandas advindas das novas tecnologias.
* Na exposição de motivos do Anteprojeto do novo CPC foi ressaltada a importância do instituto do amicus curiae: “levando em conta a qualidade da satisfação das partes com a solução dada ao litígio, previu-se a possibilidade da presença do amicus curiae, cuja manifestação, com certeza, tem aptidão de proporcionar ao juiz condições de proferir decisão mais próxima às reais necessidades das partes e mais rente à realidade do país”.
CPC, art. 322. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, de ofício ou a requerimento das partes, solicitar ou admitir a manifestação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de quinze dias da sua intimação.
Foto: Oriol Tarridas