Se a justiça não funciona, o cidadão tem que agir
Se a justiça não funciona, o cidadão tem que agir
Dando continuidade à nossa coletânea de bordões punitivistas trazidas ao Canal Ciências Criminais, trataremos neste texto do clamor popular pela punição e a noção de “fazer a justiça pelas próprias mãos” típica dos justiceiros.
Não é novidade que a impressão que chega à população é a de que, no Brasil, a justiça não é feita; ou que, no mínimo, ela é extremamente morosa em seu funcionamento.
Esse sentimento de impunidade é perigoso, pois gera clamores punitivos desenfreados alimentados pelo sensacionalismo midiático e destinados a uma classe de indivíduos apenas, sobre a qual trataremos adiante.
Afinal de contas, o que é fazer justiça? Não pretendo aqui adentrar no campo da Filosofia do Direito, até mesmo porque tal discussão não se estancaria em um parágrafo.
Mas não é preciso muita digressão aqui: ao cidadão comum que clama pela justiça, espera-se dela uma punição ao acusado, punição esta semelhante à execução de uma vingança. A sentença condenatória é recebida com satisfação, como se o problema da criminalidade se encerrasse no encarceramento.
E clama-se de forma generalizada por punições cada vez maiores e mais frequentes, aplicadas sem o devido filtro (que seria, no caso, a aplicação do direito penal e processual penal e todos os seus princípios e garantias).
Desta sensação de insegurança e impunidade surgem cenários drásticos, como a questão do armamento pessoal. A posse e o porte legalizados de armas de fogo aparecem no imaginário popular como uma possível solução a esses sentimentos negativos – afinal, um instrumento com o qual se pode ferir gravemente ou mesmo matar parece anular todos os perigos (acredito não ter havido muita reflexão acerca do fato de que todos os indivíduos estarão armados).
Além disso, deve-se ater ao fato de que a sociedade brasileira é, apesar da sensação de impunidade, extremamente punitivista. O Brasil é o 4º país com maior população carcerária do mundo, e em 2015, o número de encarceramentos aproximou-se do dobro da estatística colhida em 2009.
Aplica-se cada vez mais a pena privativa de liberdade, mas o ímpeto da punição não é satisfeito: restringir a mobilidade física não soluciona os ânimos levantados.
Assim, a população tenta saná-los de outras maneiras, já abordadas anteriormente nos textos desta série (Bandido bom é bandido morto, Tá com dó, leva pra casa!, E se fosse na sua família?, e Direitos humanos para humanos direitos). Todas as formas apelam a um sentimento primitivo de vingança e violência como resposta à criminalidade.
Diante deste quadro, tem-se que a impunidade não decorre da não aplicação da pena privativa de liberdade, e sim do fato desta privação não corresponder à resposta ao crime esperada pela sociedade.
Disso decorre a popularização das medidas alternativas que preenchem o imaginário punitivo: a legalização do porte de armas, o linchamento, os justiceiros, entre outros.
Aliás, aqui entra novamente o raciocínio do armamento pessoal: a arma de fogo torna-se páreo para uma situação de tentativa de assalto (uma pistola em punho atenta contra a vida, vencendo o atentado contra o patrimônio exercido pelo assaltante, que em teoria desistiria do crime).
É claro que um atentado contra bens materiais pode rapidamente tornar-se um atentado contra a vida da vítima, tanto da parte do “cidadão de bem” quanto do “delinquente”, mas isso não parece ser levado em consideração pelos que defendem o armamento.
Supondo que esta linha não fosse absurda e inconstitucional e fôssemos segui-la: a que tipos de crime se aplicaria a justiça feita pelas próprias mãos?
Ela seria aplicável somente a crimes que atentem contra a vida (como homicídio, tentativa de homicídio, lesão corporal) ou também para crimes que atentem contra o patrimônio?
Caso sim, quais crimes seriam? Afinal de contas, não há o mesmo clamor pelo linchamento de acusados de sonegação de impostos ou desvio de dinheiro do que pelo linchamento de acusados de furto e roubo, por exemplo.
Disso decorre uma outra reflexão: o “delinquente” a quem esse ímpeto punitivista desenfreado atinge nunca é o delinquente de elevadas condições sociais, acusado de crimes tutelados pelo Direito Penal Econômico, por exemplo.
Muito pelo contrário: perpetua-se um ódio em particular pelo delinquente de baixas condições socioeconômicas, como se fossem uma categoria especialmente merecedora de ódio e reprovação.
Programas televisivos e manchetes tendenciosas tratam da questão criminal como se ela estivesse restrita a esses crimes e a esses delinquentes, apelando para o fato de existir mais contato entre o cidadão comum e essa parte da realidade.
Temos, portanto, uma grande questão que perpassa o punitivismo exacerbado, isto é: a simples condenação e o encarceramento não satisfazem o ímpeto punitivo, devendo o cidadão tomar para si meios de ação imediata que executem no acusado seus sentimentos de vingança e crueldade.
A respeito disso, cabe citar célebre frase de Aristóteles, “A lei é a razão livre de paixão”, seja paixão entendida como os fortes sentimentos que guiam nossas ações, afastando-as da razão.
Ou seja, não cabe à “justiça” executar vinganças pessoais (reitero a leitura do texto “E se fosse alguém da sua família?” neste ponto), ou satisfazer a sede por um suplício em pleno século XXI.
Assina este texto: Patrícia Romano