Justiça negociada e devido processo legal
Justiça negociada e devido processo legal
Dispõe o artigo 5º, LIV da Constituição da República vigente que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, consistindo referida previsão, como se observa, em importante garantia dos cidadãos.
Não obstante, já em pouco tempo de vigência do referido documento que constituiu a República Federativa do Brasil, ganhou força a chamada justiça negociada, no âmbito penal, nos trazendo problemas que resultam em verdadeiros entraves à referida garantia.
Assim, foi especialmente com a Lei dos Juizados Especiais de n. 9.099/95, com o reforço dado pela Lei de n. 10.259/01 (Lei dos Juizados Especiais da Justiça Federal) que a justiça negociada penal se consolidou no Brasil, com possibilidades de negociações antes mesmo de se iniciar o processo.
E o principal foco do discutido modelo é imprimir celeridade aos processos, com verdadeiras negociações com o acusado de crimes, especialmente com os institutos da transação penal, previsto no artigo 76 da Lei 9.099/95 e o da suspensão condicional do processo, situado no artigo 89 da mesma Lei 9.099/95.
Desta forma, enquanto a transação penal encerra o processo dos crimes de menor potencial ofensivo (crimes e contravenções que pena máxima até dois anos) com aplicação de pena restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade, prestação pecuniária etc.), a suspensão condicional do processo suspende o processo por prazo, entre dois a quatro anos, nos crimes em que a previsão de pena mínima não seja superior a um ano, desde que o indivíduo cumpra algumas condições estipuladas pelo juiz neste período, como comparecimento periódico e obrigatório em juízo, proibição de viajar sem autorização judicial e/ou reparação do dano.
Ocorre que, para tanto, o sujeito deve abrir mão de se defender, independente se inocente ou não, caso aceite o acordo. E isto, sobretudo para pessoas com baixa instrução, não raras vezes gera responsabilizações por crimes inexistentes, de modo que o indivíduo sem advogado contratado (muitos vezes representado pela Defensoria Pública ou por advogado dativo) não terá condições de saber que a denúncia do Ministério Público é infundada, acabando por aceitar a transação penal ou a suspensão condicional do processo com condições absurdas, como uma reparação de danos em valores exagerados, estipulados sem o menor critério.
Ou seja, a justiça penal negociada acaba por resultar em punições sem que tenha havido o devido processo constitucional (art. 5º, LIV, da CR/88), sem o contraditório, a ampla defesa (ambos no art. 5º, LV, da CR/88) e todas as demais garantias que dele decorrem.
Como se não bastasse, a cultura da justiça negociada ganhou mais força ainda com a famigerada delação premiada, revigorada pela Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13), especialmente nos seus artigos 4º ao 7º.
A bem da verdade, muito embora a redação legal seja de “colaboração premiada”, sob a justificativa de viabilizar também a recuperação de produto ou proveito de infrações (art. 4º, IV) e a localizar vítimas (art. 4º, V), trata-se de um eufemismo para mascarar o sentido do conceito que é muito melhor representado pela semântica da palavra delação.
Assim, com a delação premiada, temos presenciado, talvez mais do que com as demais modalidades de negociações, um verdadeiro vilipêndio ao devido processo constitucional, não raro produzindo responsabilizações criminais de inocentes, tanto de delatores que assumem o que não fizeram por receio de punição maior, quanto de delatados que são alvos de caluniosas delações proferidas por investigados alvejados por um acusador inescrupuloso, que não mede esforços para bater metas burocráticas e ter seu rosto estampado nas manchetes da grande mídia tóxica que temos.
Com efeito, em grande parte das vezes seria até leviano ter o delator como um covarde, uma vez que, com este Sistema de Justiça Criminal que temos, às vezes ceder à avalanche acusatória pode prevenir algo pior.
Modelos como esta justiça negociada prezam muito mais pela quantidade, mas se esquecem da qualidade da prestação jurisdicional.
É que, para negociar, o acusador, diante de uma lógica mercantilista, acaba por ameaçar com acusações pesadas com penas altas, muitas vezes sem o menor fundamento, com o objetivo único de “engordar o acordo”, fato que acaba obrigando, especialmente os que não possuem condições de contratar um bom advogado particular, a reconhecer o que não fez, com receio de um processo que gere uma condenação maior.
Não obstante, claro que dentro dos interesses do representado, a defesa, sempre que possível, tem o dever legal de resistir às levianas pressões acusatórias, evidenciando as impropriedades das ameaças de imputações e, se de interesse dos representados, orientando-os à aceitando tão somente de acordos razoáveis.
Ora, afinal de contas, como já afirmado, ceder à justiça penal negociada é, ao fim e ao cabo, abrir mão do devido processo constitucional!
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