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Kafka, a burocracia do Direito e a injustiça vendida como Justiça

Kafka, a burocracia do Direito e a injustiça vendida como Justiça

Franz Kafka (1883/1924), autor dos magníficos “O processo” e “O castelo”, entre outras obras, tinha uma visão extremamente crítica e pessimista sobre como funcionavam o Direito e a “Justiça”, críticas que permanecem atuais. O escritor tcheco era formado em Direito, e seus conhecimentos universitários foram fundamentais em suas obras.

Tanto em “O processo” como em “O castelo”, a temática abordada é semelhante: a (in) Justiça aniquilando por completo um homem que não cometeu delito algum. A poderosa máquina estatal, com um sem número de funcionários que “somente cumprem ordens”, sempre se negando a dar informações ao cidadão que ousa interpelá-lo, por mais que sejam confrontados com argumentos lógicos:

– Como posso estar detido? E deste modo?

– Lá vem o senhor de novo – disse o guarda, mergulhando um pão com manteiga no potinho de mel. – Não respondemos a perguntas como essa.

– Terão de responder – disse K.  – Aqui estão os meus documentos de identidade, agora mostrem os seus, sobretudo a ordem de detenção.

– Ó, céus! – disse o guarda. – É incrível como o senhor não consegue se submeter à sua situação e parece empenhado em nos irritar inutilmente (…) (Kafka, pg. 14).

Na postura dos guardas de “O processo”, encontramos eco do funcionamento burocrático e irritante dos órgãos públicos, com sua infinidade de assessores, assessores dos assessores, que se negam a prestar informações coerentes ao público que o interpela.

Mesmo estando previsto no Estatuto do Advogado, Lei 8.906 de 1994, é humanamente impossível à maioria dos advogados ter uma reunião pessoal com o juiz responsável pelos autos de seus cliente:

Art. 7º São direitos do advogado:

VIII – dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada; (…).

“O processo”, livro fundamental para um conhecimento crítico do funcionamento da “Justiça”, já inicia sua narrativa com a detenção de Josef K., dentro da pensão onde morava:

– Não – disse o homem junto à janela, atirando o livro sobre uma mesinha enquanto se erguia. – O senhor não tem permissão para sair. O senhor está detido. (Idem, pg. 11).

A crítica à corrupção e a mau funcionamento da Justiça também já aparece nas primeiras páginas da narrativa, quando os guardas tentam se apoderar das roupas de Josef K.:

– É melhor que o senhor deixe as coisas conosco e não no depósito – disseram -, pois no depósito sempre ocorrem desfalques e além disso lá as coisas são vendidas depois de certo tempo, não importa se o respectivo processo terminou ou não.  E como demoram os processos desse tipo, principalmente nos últimos tempos! De qualquer modo, o senhor ao final receberia do depósito o produto da venda, mas em primeiro lugar ele já é em si mesmo exíguo, pois na venda o que decide não é o montante da oferta e sim o do suborno, e além do mais, segundo mostra a experiência, essas somas continuam diminuindo à medida que passam de mão em mão e de ano para ano. (Idem, pg. 12).

Mais adiante, em audiência com o juiz, K. declara o que pensa da “Justiça” que prendeu um inocente, e mais adiante o condenará à morte:

– Não há dúvida – disse K. em voz bem baixa, pois a escuta tensa de toda a assembleia lhe dava prazer, emergia desse silêncio um sussurro mais estimulante que o aplauso mais arrebatado, – não há dúvida de que por trás de todas as manifestações deste tribunal, no meu caso por trás da detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande organização. Uma organização que mobiliza não só guardas, corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de qualquer modo, sustenta uma magistratura de grau elevado e superior, com seu séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não recuo diante dessa palavra. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. (…) É por isso que guardas tentam roubar a roupa do corpo dos detidos, é por isso que inspetores invadem casas alheias, é por isso que inocentes devem ser aviltados, ao invés de inquiridos diante de assembleias inteiras. (…) (Idem, pgs. 61-2).

Confiante em sua inocência, Josef permanece com esperanças, até perceber que não havia saída para sua situação. De interrogatório em interrogatório, de absurdo em absurdo, o que menos importa é a verdade: Josef já estava condenado desde o início.

“O castelo”, obra derradeira, segue uma temática já abordada em “O processo”. O agrimensor K. chega a uma aldeia, onde fora chamado para executar um trabalho solicitado pelo conde de Westwest, proprietário do mencionado castelo.

Ao chegar na aldeia, a surpresa: K. é proibido de permanecer, ninguém lhe dá uma única informação consistente, não há trabalho para ele, que portanto fica sem dinheiro, além de ser perseguido pela maioria dos habitantes:

– Não é possível? – perguntou K. serenamente. – Por que então o senhor me despertou?

Em resposta a isso o jovem pôs-se em fúria. – Tipo de vagabundo! – exclamou. – Exijo o devido respeito à autoridade do conde! Despertei-o a fim de comunicar-lhe que deve abandonar imediatamente o território do condado. (Idem, pg. 26).

Perseguido por todos, K. se esconde cada momento em um lugar diferente e faz de tudo para chegar ao conde, suposto responsável por sua expulsão da vila aonde havia acabado de chegar. Todas as suas tentativas de resolver sua absurda situação esbarram em impedimentos: é impossível chegar até o conde, é impossível corrigir as injustiças que ocorrem contra ele.

Em um momento da narrativa, K. se envolve com a jovem Frieda, antiga amante do poderoso e influente Klamm. Na tentativa de auxiliar K., Frieda sugere pedir a proteção de Klamm.  Obviamente, a tentativa de interpelar o poderoso Klamm para que este intercedesse em favor de K. não ocorre, e ainda Frieda também passa a ser persona non grata em sua própria aldeia.

A narrativa termina sem que K. resolva sua situação. Nesse labirinto sufocante em que a estória se desenvolve, tudo está contra K. desde o início, ainda que este não tenha cometido nenhum delito. O castelo é real e ao mesmo tempo uma metáfora de uma instituição poderosa, uma máquina estatal e burocrática, cheia de grandes e pequenos funcionários, que parecem mais empenhados em cometer injustiças do que em resolvê-las.


REFERÊNCIAS

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Martin Claret: 2006.

SILAS FILHO, Paulo (org.). Direito & Literatura: Diálogos com Orwell, Kafka e Harper Lee. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2018.


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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