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Kalief Browder: a busca pela inocência desacreditada

Kalief Browder: a busca pela inocência desacreditada

Decisões erradas podem ter consequências incalculáveis e, muitas vezes, trazem marcas que talvez nunca possam ser apagadas. Esse é o caso de Kalief Browder. Em 2010 ele foi acusado injustamente de ter roubado uma mochila, e, por um erro na identificação precisa por parte da vítima a respeito de quem seriam os verdadeiros culpados, sua vida foi duramente transformada.

O caso Kalief Browder

Kalief tinha 16 anos e passou mais de 1.000 dias no presídio de Rikers Island em Nova York, Estados Unidos, um local onde a brutalidade, corrupção, sofrimento e maus tratos a tornaram bastante conhecida, sendo chamada, inclusive, de Baía de Guantánamo de Nova York. Mais de 70% dos seus dias na prisão foram na solitária. Como se não fosse o suficiente, mais de 30 julgamentos seus foram adiados. Tudo isso, sem ter sido condenado por nenhum crime.

Durante o tempo que passou injustamente na prisão, Kalief alega ter sido preso pela Polícia de Nova York de forma injusta, a promotoria do Bronx teria negado realizar um procedimento célere a seu favor e, ainda, diz ter sido espancado, torturado e passado fome durante o seu tempo de prisão. 

De acordo com Anthony Kapel Van Jones, autor de livros e ativista social, em depoimento contido no documentário “Tempo: A História de Kalief Browder”, o caso de Kalief, e de tantos outros, não se trata apenas de estatísticas. Não é apenas um problema, mais uma causa similar a tantas outras. Eles são seres humanos, adolescentes e indivíduos que, nas cidades americanas, não têm o direito de serem considerados humanos

Nenhuma evidência física ligava Kalief ao crime. Entretanto, ele foi injustamente acusado de cometer um crime. Sem a possibilidade de pagar pela fiança, passou um período caótico na prisão enquanto esperava o devido julgamento pelo ocorrido. Um julgamento justo era tudo o que ele esperava, mas isso nunca ocorreu. Enquanto a espera parecia não ter fim, segundo sua mãe, Venida Browder, Kalief aprendeu a permanecer em posição fetal para proteger seu rosto e sua cabeça enquanto era atacado por outros detentos enquanto estes pisavam, batiam e chutavam o seu corpo. 

Mesmo que Kalief tenha recebido a liberdade, em maio de 2013, essencialmente pela falta de provas do seu envolvimento no crime, ele ainda levava consigo o impacto psicológico e emocional que essa história teve em sua vida. Em entrevista para o documentário produzido a respeito da batalha por sua sobrevivência e inocência, Kalief disse:

Enquanto conversamos sobre as coisas pelas quais passei antes, sinto que tenho muitos traumas comigo. Não é por algo que eu fiz, é pelo que vi e passei na vida. Essa sensação não me deixa em paz.

Kalief faleceu em 06 junho de 2015, em sua própria casa, no distrito do Bronx, em Nova York. Apesar da liberdade física, sua mente ainda estava presa. Vítima de um sistema falido que precisa ser urgentemente reformado, sua vida teve fim após um suicídio por enforcamento. 

Innocence Project: a persistência pela reversão de condenações injustas

Diante da recorrência de erros por parte do Poder Judiciário, onde inúmeras pessoas são presas injustamente e acabam respondendo por crimes que não cometeram, faz-se importante mencionar o trabalho de quem luta para reverter, mediante seus próprios esforços, uma injustiça cometida de forma impiedosa.

O Innocence Project surgiu nos Estados Unidos em 1992, como uma associação sem fins lucrativos, com o objetivo essencial de comprovar a inocência de indivíduos condenados injustamente e, assim, ajudar na reforma do sistema judiciário penal americano para evitar futuras injustiças

Os números apresentados dão uma sensação de inquietação e fazem entender a motivação por trás de um projeto tão grande e distinto. De acordo com dados informados pela própria associação, desde 1989, quando houve o primeiro caso nos Estados Unidos em que um teste de DNA comprovou a inocência de um acusado, 365 pessoas foram inocentadas. Deste número, 187 casos de pessoas inocentadas por teste de DNA foram resultado do trabalho do Innocence Project

O trabalho realizado tenta falar pelos que não são notados e isso tem sido demonstrado através de informações que visam remediar a série de erros por trás das condenações injustas. Em cerca de 69% dos casos, houve identificação equivocada por parte de testemunhas ou vítimas, condenando inocentes primordialmente devido ao erro do acusador.

Uma razão apontada pela associação informa algo importante a respeito de condenações injustas: A defesa inapropriada. Na maioria dos casos, pessoas inocentes são condenadas pelo fato de não haver o estudo do caso concreto e preparo adequado pelo advogado criminalista, falta de recursos por parte do profissional ou a intimação assertiva de testemunhas. Somado a isto, a redução do financiamento e o acesso escasso a recursos por parte dos defensores públicos e advogados nomeados pelo tribunal torna o problema ainda pior

É como se essas pessoas, independentemente ou não de serem inocentes, não merecessem ser devidamente ouvidas e ter um julgamento pautado pelo devido processo legal.

Em 2016 a associação surgiu no Brasil como a primeira organização criada com o propósito de ajudar pessoas inocentes que foram injustamente condenadas. Os quatros requisitos que devem ser preenchidos a fim de que o caso seja avaliado pela organização são: (i) a pessoa, de fato, não foi responsável pelo crime ao qual foi condenada; (ii) ela deve possuir, no mínimo, 05 anos de pena a cumprir; (iii) existe uma prova ou fato que pode absolver a pessoa, o qual nunca foi abordada pelo Poder Judiciário anteriormente e (iv) já deve ter ocorrido o trânsito em julgado da condenação.

O primeiro caso solucionado pelo Innocence Project Brasil ajudou a mudar o destino de Atercino Ferreira de Lima Filho, acusado de abusar sexualmente de seus dois filhos. Conforme consta na ação de indenização movida por Atercino contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, o Juízo da 5ª Vara Criminal da Comarca de Guarulhos, SP, julgou procedente a pretensão punitiva, considerando como irrefutáveis as provas que comprovaram a autoria do crime. Entretanto, referidas provas baseavam-se na declaração dos dois filhos, estes ainda crianças, que, mais tarde, revelaram ter sido obrigados pela mãe –  e ex-mulher do acusado – através de maus tratos, a realizar as acusações contra seu pai.

Em um país onde não há a apuração de dados oficiais pelos órgãos competentes a respeito de condenações injustas, ter a presença de uma associação que busca a justiça e a reversão de referidas condenações através de critérios objetivos, sempre pautados na legislação vigente, é um passo essencial para abrir os olhos da sociedade e do Estado a respeito do sistema judiciário penal brasileiro e da necessidade iminente por mudanças.


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