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Lampião, o tal João de Santo Cristo da vida real

Por Anderson Figueira da Roza

A coluna desta semana tem o objetivo de fazer uma compilação histórica e jurídica sobre a trajetória de um dos personagens mais instigantes do Brasil. Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, tem inúmeros fatos relacionados à sua forma de viver pelo interior do Nordeste. Por incrível que pareça, dos registros históricos sobre sua vida, a única certeza é de que indiscutivelmente ele e mais dez pessoas foram brutalmente executados e decapitados pela volante comandada pelo Tenente João Bezerra no dia 28 de julho de 1938 na Fazenda de Angicos, no sertão de Sergipe.

Há controvérsias sobre a data de nascimento deste homem, a literatura de cordel registra o dia 4 de junho de 1898 (há uma certidão de batismo com esta data), porém o próprio Lampião concedeu uma entrevista ao escritor cearense Leonardo Mota, em 1926, na cidade de Juazeiro do Norte, afirmando que nascera em 12 de fevereiro de 1900, além disso, o registro oficial de seu nascimento só ocorreu em 12 de agosto de 1900 (informações não confirmadas).

Virgulino foi o terceiro filho que seus pais tiveram. Consta que era alfabetizado, e que até seus vinte e um anos era um artesão. Usava óculos, um acessório pouco comum para a região nordestina daquela época e também para o seu padrão de vida, o que reforça a tese que realmente sabia ler e escrever. Sua família travava disputas com as famílias Carvalho e Pereira na região de Pernambuco, onde seu pai acabou sendo assassinado, e Virgulino jurou vingança. Sua alcunha é atribuída à modificação que fez em uma espingarda para atirar com mais rapidez, o que fazia o cano brilhar tanto que se assemelhava a um lampião.

Embora ainda jovem tenha lavado de sangue a sua honra pelo pai assassinado, Lampião gostou das corridas armadas pela caatinga, e aderiu aos assaltos, tiroteios, homicídios e estupros.  É prudente entendermos que a ocupação atribuída a Lampião e seu bando, era a de cangaceiro, onde a história cita o seu nome como o Rei do Cangaço e posteriormente Governador do Sertão.

Estranhamente, cangaço tem origem na palavra canga, que nada mais é do que uma peça de madeira que prende uma junta de bois, nada de pejorativo. Porém, a estigmatização do termo cangaceiro ocorre quando alguns homens em meados do século XIX, no sertão nordestino, começaram a utilizar roupas de couro com chapéus, armados com espingardas, revólveres e facas alongadas na cintura (denominadas peixeiras). Os cangaceiros não podem ser confundidos com os jagunços, pois estes vendiam seus serviços de proteção (como seguranças privados) aos proprietários de terras (coronéis do nordeste).

No ano de 1922, final do governo do Presidente Epitácio Pessoa, alguns Tenentes do Exército se rebelavam em Copacabana, enquanto isso Lampião assumia o comando de um grande grupo de cangaceiros pelos sertões do Sergipe e da Bahia, herdando os homens de outro cangaceiro conhecido como Sinhô Pereira, e a partir do seu comando faziam aparições eventuais pelos Estados de Alagoas, Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte e por tudo isso se tornou uma lenda.

É fundamental que se tenha a noção que mesmo sendo considerados como terríveis bandidos, com um modelo de justiça muitas vezes instantânea, pois decidiam sobre a vida e a morte de quem cruzasse seus caminhos pelo interior do Brasil, os cangaceiros também contavam com uma incrível rede de proteção da população dos grotões do Nordeste brasileiro. Há relatos que os cangaceiros saqueavam os políticos, fazendeiros e coronéis, e distribuíam o dinheiro para a população mais pobre, em troca, recebiam apoio e informações privilegiadas sobre quem os perseguia.

Embora tenha adquirido a fama de bandido sanguinário, em 12 de abril 1926, durante o governo do Presidente Artur Bernardes, Lampião recebeu o título de “Capitão Legalista” do Exército brasileiro, das mãos do deputado Floro Bartolomeu Costa e do padre Cícero. Além da condecoração, ganhou ainda novos fuzis Mauser e trezentos homens ficaram à sua disposição, em contrapartida teria que perseguir e aniquilar a Coluna Prestes (liderada pelo Tenente engenheiro Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança), que nessas alturas viajava também pelo interior do Nordeste brasileiro.  Há notícias que Lampião esteve muito próximo e teve chances reais de entrar em confronto com Prestes, porém, teria ouvido relatos que Prestes tinha planos para melhorar a vida da população pobre do Brasil, e ao ser certificado que o documento que havia recebido de Capitão do Exército não tinha validade legal, e que também não seria anistiado pelas acusações do seu recente passado, desistiu do combate. E armado pelo governo brasileiro, retornou a pilhar o Nordeste brasileiro.

Maria Gomes de Oliveira havia se casado com quinze anos de idade com o sapateiro José Miguel da Silva (vulgo Zé Neném), e depois de alguns desentendimentos com o seu marido, retornou para a residência de José Gomes de Oliveira e Maria Joaquina Conceição Oliveira, seus pais. Em 1928, Lampião cruza pelas terras dos Oliveiras e é convencido por Maria Joaquina a conhecer sua filha Maria, e apaixona-se por ela, assim como há relatos que ela já era por ele, devido à sua lenda. A Maria Gomes de Oliveira passou a ser conhecida a partir desta época como Maria Bonita, e Lampião a chamava de também de Santinha, tiveram uma filha de nome Expedita e outros três natimortos ao longo dos dez anos que estiveram juntos pelas caatingas do Nordeste. Maria Bonita foi a primeira mulher a virar cangaceira. O que abriu precedente para os demais integrantes do cangaço a se unirem com outras mulheres.

No final da década de 1930, o Brasil era governado por Getúlio Vargas, no conhecido Estado Novo, a cabeça de Lampião estava a prêmio, como a imagem abaixo:

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Após o massacre de Angicos em 1938, onde se constatou que o bando de Lampião não contou com muito mais de onze pessoas, pois há relatos que alguns cangaceiros conseguiram fugir pelo mato, os corpos foram deixados num riacho próximo ao local, e suas cabeças foram armazenadas em latas com querosene, e levadas para à exposição na escadaria da igreja de Santana do Ipanema, cidade mais próxima dali.

Em sequência, a volante do Tenente Bezerra passou por outras cidades de Alagoas e da Bahia, as cabeças, vestimentas e armamentos dos onze cangaceiros era atrações por todas as localidades, como esta foto emblemática tirada na cidade de Piranhas, em Alagoas:

Degola_de_Lampião_MB

Como a caçada era especificamente ao Lampião, há apenas as alcunhas dos demais, como se observa no canto superior à esquerda: LAMPIÃO, QUINTA FEIRA, MARIA BONITA, LUIZ PEDRO, MERGULHÃO, ELÉTRICO, CAIXA DE FÓSFORO, ENEDINA, CAJARANA, NÃO CONHECIDO, DIFERENTE.

Em 1940, outro cerco ao bando de Cristino Gomes da Silva Neto, amigo de Lampião, vulgo Corisco/Diabo Loiro, desta vez pela volante de Tenente Zé Rufino, na cidade de Barra do Mendes na Bahia, pôs fim a era do cangaço no Brasil.

Os restos mortais de Corisco, Maria Bonita e Lampião, uniram-se à cabeça de Antônio Conselheiro, no tétrico museu Nina Rodrigues, em Salvador na Bahia, e influenciados pela Criminologia de Lombroso, Ferri e Garofalo foram medidas, pesadas, avaliadas e estudadas para ser encontrada a origem do mal. Todas as cabeças, sem exceção, foram consideradas normais, nada de tamanho, peso, formato peculiar a ser classificado como um criminoso nato. Foi somente ao final da década de 1960 que a filha de Lampião e Maria Bonita e seus netos, conseguiram a permissão para retirá-los do citado museu e deram um enterro cristão para ambos.

Se fizermos uma leve comparação com as notícias atuais no Brasil, veremos que as manchetes policiais de prisões e apreensões de quadrilhas ou bandos, excetuando as decapitações da década de 1930, se assemelham com a foto do grupo de Lampião, as pessoas e os objetos apreendidos são expostos com os banners da polícia diariamente. Há quem diga, inclusive, que a forma em que os bandos armados dos traficantes de drogas, são os novos cangaceiros no Brasil, com execuções sumárias, dentre outras atividades. A corrupção existia naquela época, tanto quanto hoje, e as famosas delações do passado apenas não eram premiadas, hoje são.

O que salta aos olhos é a ausência de processos daquele período, onde tanto os cangaceiros quanto às volantes agiam fora da lei. Há um texto brilhante da autoria do juiz de direito Gerivaldo Alves Neiva, denominado “O julgamento de Lampião” (ver aqui), onde o magistrado ensaia como seria julgar o Rei do Cangaço atualmente, e critica a si mesmo e ao modelo de justiça atual.

De concreto temos que Lampião é de fato uma lenda, sua vida rende textos, livros, filmes, de tempos em tempos, inevitavelmente sua história não terminou no dia 28 de julho de 1938, em Angicos. Ela se perpetua através dos anos e fascina não somente os nordestinos, como os brasileiros. Em homenagem a ele, foi criado no seu município natal de Serra Talhada em Pernambuco, o Dia do Xaxado, que era a dança que os cangaceiros do seu bando faziam em suas festas na cidade por onde passavam.

Ainda em vida, o grande Luiz Gonzaga do Nascimento relatou que era fã da história de Lampião, e dos cangaceiros, muitas vezes se apresentando vestido como tal e dançando xaxado, Gonzagão conquistou o Brasil acabou se tornando o Rei do Baião.

Por fim, pensando na ficção da obra do tal João de Santo Cristo, “que queria era falar com o Presidente para ajudar toda essa gente que só faz sofrer”, de Renato Russo, finalizo o artigo com uma frase do próprio Lampião, em entrevista publicada no jornal O POVO, em 4 de junho de 1928: “Não sou cangaceiro por maldade minha, mas pela maldade dos outros…”

AndersonFigueira

Anderson Roza

Mestrando em Ciências Criminais. Advogado.

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