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Latrocínio ou roubo: a subtração de bem móvel alheio e a morte do comparsa

Latrocínio ou roubo: a subtração de bem móvel alheio e a morte do comparsa

A respeito do crime de latrocínio, dispõe o art. 157, § 3º, II, do Código Penal:

Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

[…] § 3º  Se da violência resulta:

[…] II – morte, a pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.    

A infração penal acima, hedionda segundo o art. 1º, II, da Lei n. 8.072/1990, que doutrinariamente recebeu o nomen juris latrocínio, contempla crime complexo qualificado pelo resultado, formado pela soma dos delitos de roubo e homicídio, doloso ou culposo.

Situação peculiar, contudo, verifica-se quando a vítima ou um terceiro (policial, vigilante, segurança etc), ao agir em legítima defesa própria ou alheia, causa a morte de um dos autores do delito.

Nesse caso, o crime de latrocínio pode ser imputado ao corréu sobrevivente, em razão do resultado morte do coautor?

Temos que considerar, antes de tudo, que o delito em questão “ocorre quando, do emprego de violência física contra a pessoa com o fim de subtrair a res, ou para assegurar a sua posse ou a impunidade do crime, decorre a morte da vítima” (Capez, Fernando, Curso de direito penal. v. 2. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 481).

Dito de outro modo, para a caracterização do delito de latrocínio, a morte do ofendido deve ter relação com a subtração do bem, uma vez que a ação criminosa é direcionada a ele, sujeito passivo da infração penal.

Porém, quando a morte do comparsa ou coautor é causada pelo ofendido ou por um terceiro, em legítima defesa própria ou alheia, há ruptura do nexo causal entre a conduta de subtrair bens perpetrada pelo agente (comparsa ou coautor) e o resultado (morte).

Sobre o assunto, extrai-se da doutrina:

Importa frisar que a morte deve decorrer do emprego de violência pelo agente com o fim de se apoderar da res ou assegurar a sua posse ou garantir a impunidade do crime. Se, contudo, a morte advier de motivos outros como ciúme, vingança etc., haverá o crime de roubo em concurso com o crime de homicídio. É que, ausente uma daquelas finalidades contidas na lei, não é possível estabelecer um nexo causal entre o roubo e a morte produzida e, portanto, o crime qualificado pelo resultado (Capez, Fernando. Curso de direito penal, volume 2, parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212) – 5. ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2005, p. 420).


A morte de qualquer dos participantes do crime (sujeito ativo) não configura latrocínio. Assim, se um dos comparsas, por divergências operacionais, resolve matar o outro durante um assalto, não há falar em latrocínio, embora o direito proteja a vida humana, independentemente de quem seja seu titular, e não apenas a da vítima do crime patrimonial. Na realidade, a morte do comparsa, nas circunstâncias, não é meio, modo ou forma de agravar a ação desvaliosa do latrocínio, que determina sua maior reprovabilidade. A violência exigida pelo tipo penal está intimamente relacionada aos sujeitos passivos naturais (patrimonial ou pessoal) da infração penal, sendo indispensável essa relação causal para configurar o crime preterdoloso especialmente agravado pelo resultado. No entanto, convém ter cautela ao analisar essas questões, pois também aqui tem inteira aplicação o erro quanto à pessoa (art. 20, §3º, CP). Se o agente, pretendendo matar a vítima, acaba matando o coautor, responderá pelo crime de latrocínio, como se tivesse atingido aquela; logo, é latrocínio. Não haverá latrocínio, por sua vez, quando a própria vítima reage e mata um dos assaltantes. A eventual morte de comparsa em virtude de reação da vítima, que age em legítima defesa, não constitui ilícito penal algum, sendo paradoxal pretender, a partir de uma conduta lícita da vítima, agravar a penados autores (Bittencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 4ª edição, Parte Especial, volume 3, São Paulo: 2008, p. 93-94).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao enfrentar a matéria, decidiu:

Latrocínio – Não-caracterização  – Assaltante que morreu atingido pelos disparos dos vigilantes da firma assaltada, estes em situação de legítima defesa – Resultado ‘não-criminoso’ que não pode ser erigido como componente exacerbador integrativo da figura do latrocínio. Latrocínio haveria se um dos guardas fosse morto. Latrocínio também haveria se um dos assaltantes, fazendo mira numa vítima, comprovadamente atingisse e matasse, por aberratio ictus, um incauto transeunte ou até mesmo um dos comparsas. Será, porém, ir longe demais e desbordar dos princípios que regem a relação de causalidade no Direito penal sustentar que devem responder por latrocínio os assaltantes frustrados na empreitada criminosa, ante o revide legítimo dos guardas ou vigias, que matam um dos delinquentes. Se o resultado morte de corréu da ação dos guardas que estavam em situação de legítima defesa e, portanto, não praticaram crime algum, como pretender que este resultado não criminoso seja erigido como componente exacerbador integrativo da figura do latrocínio? Seria ilógico e até mesmo paradoxal que um resultado lícito fosse transmudado em elemento constitutivo do fato ilícito previsto no art. 157, § 3º (2ªparte), do CP (RT629/308).


APELAÇÃO CRIMINAL ROUBO MAJORADO TENTADO – ARTIGO 157, § 2º, INCISOS I E II, C.C. ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL. RECURSO MINISTERIAL PRETENDIDA CONDENAÇÃO POR LATROCÍNIO COM ERRO DE EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. MORTE DE COMPARSA. DÚVIDAS QUANTO A ORIGEM DO DISPARO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O ARTIGO 157, §2º, DO CÓDIGO PENAL BEM OPERADA PELO D. JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU. CONDENAÇÃO MANTIDA. DOSIMETRIA PENAL. PENAS BASILARES ACIMA DO MÍNIMO. ATENUANTE DA CONFISSÃO. ELEVAÇÃO DA PENA PELA TENTATIVA. ITER CRIMINIS PERCORRIDO EXTENSAMENTE. DIMINUIÇÃO PELA METADE. REGIME INICIAL SEMIABERTO MANTIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO (TJSP. Apelação criminal n. 0003315-68.2010.8.26.0266, julgada em 26/6/2014. Relator: Des. Silmar Fernandes).


Se o resultado ‘morte’ ocorrido em relação a um dos assaltantes se verifica em consequência de reação a vítima agindo em legitima defesa, inadmissível atribuí-lo aos corréus. Seria ilógico e até paradoxal que um resultado lícito (a legítima defesa) fosse transcrudado em elemento constitutivo do fato ilícito previsto no art. 157, § 3°, segunda parte, do CP (TJSP. Apelação criminal. Relator: Des. Jarbas Mazzoni, RT641/313 e RJTJSP117/446).

Tribunais de Justiça de outros Estados já se manifestaram sobre o assunto:

APELAÇÃO CRIMINAL – TENTATIVA DE LATROCÍNIO E LATROCÍNIO CONSUMADO – CONDENAÇÃO PELO PRIMEIRO CRIME E ABSOLVIÇÃO PELO SEGUNDO – 1. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PRETENDENDO A CONDENAÇÃO DO SENTENCIADO PELO CRIME DE LATROCÍNIO CONSUMADO EM RAZÃO DA MORTE DO COMPARSA – IMPOSSIBILIDADE – INEXISTÊNCIA DE CORRELAÇÃO ENTRE O RESULTADO (MORTE DO COAUTOR) E A CONDUTA DO AGENTE (VIOLÊNCIA EMPREGADA PARA A SUBTRAÇÃO) – COMPARSA MORTO POR POLICIAL MILITAR QUE AGIU EM LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO – CRIME INEXISTENTE – 2. IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA VISANDO A DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO DE TENTATIVA DE LATROCÍNIO PARA O DE ROUBO SIMPLES OU ROUBO QUALIFICADO PELA LESÃO CORPORAL GRAVE – INVIABILIDADE – COAUTOR QUE EFETUA DISPAROS, COM EVIDENTE ANIMUS NECANDI, CONTRA MILICIANO QUE INTERVEIO NA PRÁTICA DELITIVA, NÃO CONSUMANDO O CRIME POR CIRCUNSTÂNCIAS ALHEIAS À SUA VONTADE – CRIME NA FORMA TENTADA QUE PRESCINDE DE LAUDO DE LESÕES CORPORAIS E DA OCORRÊNCIA DO EVENTO MORTE.[…]. 1. Para que haja correta adequação típica ao delito de latrocínio, deve haver nexo causal entre a conduta do agente e o resultado esperado, ou seja, a morte que qualifica o roubo (latrocínio) deve ser um resultado da violência empregada para a subtração. Se, por outro lado, um dos comparsas do roubo é morto por ação da vítima ou de terceiro, no exercício da legítima defesa, como é o caso dos autos, não há crime algum, já que a ação está albergada por causa excludente de ilicitude, não podendo o resultado morte ser imputado a qualquer dos autores do roubo. 2. Para caracterizar o crime de tentativa de latrocínio, não é necessário aferir a gravidade das lesões experimentadas pela vítima, bastando, para tanto, a comprovação de que, no decorrer do roubo, o acusado atentou contra a sua vida com o claro desígnio de matá-la, sendo prescindível, portanto, a existência laudo pericial atestando lesão corporal de natureza leve ou grave. E, com maior razão, não é preciso que a vítima venha a óbito, caso em que se estaria a falar em latrocínio consumado. […]. 9. Pelo desprovimento de ambos os recursos. E, de ofício, pelo redimensionamento da pena fixada ao increpado (TJMT. Apelação criminal n. 0019528-91.2012.8.11.0042, julgada em 6/8/2014. Relator: Des. Luiz Ferreira da Silva).


APELAÇÃO CRIMINAL. LATROCÍNIO. EMENDATIO LIBELLI. DESCLASSIFICAÇÃO. ROUBO QUALIFICADO. CORRÉU MORTO DURANTE PERSEGUIÇÃO POLICIAL. REFORMA. AUSÊNCIA DE LESÃO AS VÍTIMAS. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DÚVIDAS QUANTO A INTENÇÃO DO APELADO. NEGA. 1) Não merece prosperar o pedido de reforma da sentença desclassificatória da prática do latrocínio para o roubo qualificado pelo emprego de arma e concurso de agentes se não constando no acervo probatório que o apelado tenha causado a morte do comparsa para assegurar a impunidade do crime, pela prova oral atestar que óbito ocorreu pelos disparos efetuados pelos policiais. 2) Não haverá latrocínio, quando os policiais reagem e matam um dos assaltantes, pois a eventual morte de comparsa em virtude de reação dos milicianos, que agem em legítima defesa, não constitui elementos caracterizador da intenção dolosa de matar por parte do apelado com fim de apoderamento da coisa. 3) APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA” (TJGO. Apelação criminal n. 0353162-74.2015.8.09.0100, julgada em 1/6/2017. Relator: Des. Nicomedes Domingos Borges).

Como dito, embora a morte do comparsa possa ter ocorrido no mesmo contexto fático da subtração dos bens, a conduta de quem efetuou o disparo da arma de fogo por exemplo, seja a vítima ou um terceiro, não possui nexo de causalidade com o crime de latrocínio, pois o referido delito exige que a ação (subtração de bem alheio + morte) seja realizada em desfavor do ofendido.

Considere-se, ainda, que o ofendido ou o terceiro agiram sob o pálio da legítima defesa, causa excludente de ilicitude, razão pela qual o seu resultado não pode ser transferido ao corréu.

Não se pode negar que a ação dos agentes relativa ao assalto e a reação da vítima ou do terceiro tem ligação fática entre si, mas estas circunstâncias não podem refletir no campo jurídico a ponto de caracterizar a prática do crime de latrocínio, mas apenas o cometimento do delito de roubo.


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