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Há latrocínio sem subtração de coisa alheia móvel? (Análise da Súmula 610 do STF)

A Súmula 610 do STF determina: “Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima.”

Pretende-se, neste texto, questionar: a súmula, ainda que receba apoio substancial da doutrina, fere o princípio da legalidade estrita em matéria penal?

Pode o STF, mediante decisão sumulada, desconfigurar a tipicidade, ampliando o rol de condutas abarcado pela descrição normativa, sob argumentos de política criminal, ainda que calcados na proteção de bens jurídicos de valor elevado como a vida?

Para tentar responder a primeira questão, leia-se com atenção o que dispõe o art. 157, § 3º:

Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

§3º Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa. 

A análise do tipo objetivo descrito no caput revela similitude com o crime de furto, acrescido da descrição do meio pelo qual se concretiza o verbo núcleo, ou seja, mediante grave ameaça ou violência ou ação que reduza a resistência da vítima.

Trata-se de crime patrimonial, incluído no rol do capítulo II do título III (Dos Crimes Contra o Patrimônio) do CP. A Lei 9.426/1996 aumentou a pena base da lesão corporal de cinco para sete anos, que era o limite estabelecido pela Lei 8.072/90. Por sua vez, a Lei 8.930/94 incluiu o latrocínio entre os crimes hediondos.

Com esse breve histórico, fica fácil notar a especial reprovabilidade com que se pretende tratar o desvalor do resultado, quando a conduta, dirigida para o fim do crime patrimonial, termina por lesar bens jurídicos relacionados à integridade física e a vida.

Passemos a análise de um caso concreto: determinado agente visa roubar agência bancária. Inicia a ação delitiva mediante ameaça com arma de fogo, ordenando que todos os que estão presentes na agência se deitem no chão. Vigilante faz movimento no sentido de levar a mão ao bolso e o agente o alveja, causando-lhe a morte. Apavorado, o agente sai correndo do local sem realizar a subtração inicialmente pretendida.

De acordo com a Súmula supracitada, o agente deverá responder por latrocínio consumado, com pena de reclusão de vinte a trinta anos.

Questiona-se primeiramente se essa solução é conforme o princípio da tipicidade (legalidade) estrita. A resposta que pretende ser sustentada a seguir é negativa.

O verbo núcleo do tipo de roubo qualificado pelo resultado morte (latrocínio) é “subtrair”. Não havendo a subtração, por motivo alheio a vontade do agente (para não se falar em modalidades de arrependimento), a solução oferecida fere de morte a adequação típica.

Caberia o argumento de política criminal tendente a oferecer proteção especial à vida? Não. Por dois motivos. Em primeiro lugar, para que seja legítima, a proteção não pode ferir princípios constitucionais democráticos. Deve-se realizar a adequação legislativa, se assim for entendido necessário.

Em segundo lugar, não se trata de caso para o qual não hajam soluções adequadas a partir do código vigente.

Por exemplo, a classificação da conduta descrita como homicídio qualificado (pena de doze a trinta anos) em concurso com roubo tentado, qualificado pelo emprego de arma (pena de quatro a dez anos, acrescida de 1/3 até metade) pode fazer com que a pena atinja patamar superior ao latrocínio consumado (em teoria, considerado o limite máximo legal da pena de reclusão).

Considerando, porém, a adequação tecnicamente mais correta, o case deve ser sancionado como latrocínio tentado. Dentro da lógica finalista, com preponderância para o conceito de ação e valoração do dolo, a tipificação mais correta seria, me nossa visão, esta. A intenção do agente, de subtração de coisa móvel alheia para si, é cristalina.

A motivação do disparo, como reação ao movimento do vigilante também é clara, não sendo necessário perguntar-se sobre o animus necandi, já que o agente encontra-se em situação em que claramente elevou o risco de que evento morte ocorresse, aceitando esta consequência como possível e provável.

Não se consumando o verbo-núcleo do tipo, a subtração, houve tentativa.

A pena será baixa? Essa pergunta se mostra medíocre após a análise da legalidade e adequação típica precisa. Ela só é feita sob o manto de um perigoso eficientismo penal, desprovido inclusive de prova empírica, já que a severidade da pena nunca teve sua relação com a prevenção geral comprovada.

Ressalte-se ainda que esta avaliação só poderia ser seriamente considerada no momento legislativo, não cabendo ao juiz, fora dos termos do art. 59 do CP, valorar a pena com base em acepções pessoais acerca do grau de reprovabilidade da conduta, mediante mera constatação da gravidade abstrata do delito.

Não se pode admitir política criminal judiciária no Estado de Direito.

Ainda assim, pelo amor ao debate, calculemos a pena do latrocínio tentado. Levando em conta a pena base e aplicando a regra do Art. 14, parágrafo único, do CP, a menor pena possível, sem consideração a outras variáveis cabíveis, seria de pouco mais de 6 anos e meio.

Considerando a remotíssima probabilidade de se tratar de não reincidente e a valoração dos itens do art. 59 do CP ser positiva, a pena seria cumprida em regime semi-aberto (regra do Art. 33, § 2º, “b”, do CP).

Sendo realistas, seria extremamente raro, num caso como esses, observar a aplicação da pena base, a não valoração negativa da personalidade e outros itens do art. 59 CP e a diminuição pela tentativa no grau máximo (2/3). Na prática, dificilmente estaríamos tratando de uma pena menor do que oito anos.

Assim, em resposta a primeira questão: a aplicação indiscriminada da súmula 610 do STF fere o princípio da legalidade estrita, desconfigurando adequação típica clara quando observada a ausência de subtração de coisa móvel alheia, ensejando a concretização de uma política criminal judiciária, não compatível com a democracia constitucional, sob o manto de argumentos eficientistas que nem mesmo resistem a análise fática.

Caminhando para segunda questão: o STF possui legitimidade para, através de decisões sumuladas, afastar a descrição típica e estabelecer um novo tipo penal, a saber, um latrocínio em que não houve subtração de coisa alheia móvel?

A resposta é fortemente negativa. Ainda que a súmula estabilize o que vem sendo decidido pelos tribunais, não pode servir de “norma” geral (universalizante). É por isso que a forma como se enuncia a Súmula 610 padece de constitucionalidade. Quando ela afirma: “há crime de latrocínio”, ela legisla. Cria um novo tipo penal.

Os tribunais e juízes singulares o que fazem a partir disso? “Deduzem” da súmula a “nova lei” para os casos concretos, sem a mínima análise da base deste “precedente” (que literalmente não o é) e necessária compatibilização com o fato que está sub judice no momento. Muitos já se manifestaram contra esse cenário.

Quem sabe o nome mais lembrado seja o do professor Lenio Streck. Em entrevista ao Jornal Carta Forense, lá nos idos de 2008, o professor já explicava sua posição:

...pensa-se, cada vez mais, que, com a edição de uma súmula, o enunciado se autonomiza da faticidade que lhe deu origem. É como se, na própria common law, a ratio decidendi pudesse ser exclusivamente uma proposição de direito, abstraída da "questão de fato" (v.g., por todos, Neil McCormick). Se isso é crível, então realmente a súmula e qualquer enunciado ou verbete (e como gostamos de verbetes, não?) será um problema. E dos grandes. E como respondo a isso? Com uma "exigência hermenêutica" que se traduz na frase de Gadamer: só podemos "compreender o que diz o texto a partir da situação concreta na qual foi produzido". (...) A questão de direito, que surge do julgamento anterior (ou da cadeia de julgamentos), será sempre uma questão de fato e vice-versa. Por isso - e nisso reside o equívoco de setores da doutrina - é impossível transformar uma súmula em um "texto universalizante". Insisto: isso seria voltar à filosofia clássica-essencialista. É preciso entender que a "aplicação" de uma súmula não pode ser feita a partir de um procedimento dedutivo. Que as súmulas são textos, não há dúvida. Só que "esse texto" não é uma proposição assertórica. Portanto, não pode ser aplicada de forma irrestrita e por "mera subsunção" ou por "dedução". No paradigma filosófico em que nos encontramos, é equivocado falar ainda em subsunção, indução ou dedução[1].

Subscrevemos esta visão, de que a súmula não pode ser instrumentalizada como meio de “subsunção” ou “autonomização da facticidade”.

Dados os argumentos elencados, entendemos que as situações concretas (não são poucas) precisam ser analisadas de forma individualizada. A Súmula 610 STF, se for aplicada, precisa ter sua adequação claramente fundamentada na similitude concreta com os casos em que sua edição se baseou.

Na maioria dos casos em que não houver subtração de coisa móvel alheia, mas ocorrer o homicídio pelo agente que intencionava praticar a ação descrita no art. 157, caput, do CP, a solução mais coerente com o sistema penal vigente penderá para aplicação do tipo de latrocínio tentado.

Qualquer valoração de politica criminal que enxergue nesta solução uma proteção deficiente a bens jurídicos superiores, como a vida e a integridade física, precisa ser discutida de modo democrático, ou seja, pela via legislativa.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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