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PL 423/2018 exige laudo psicológico para a soltura de agressor de mulher

PL 423/2018 exige laudo psicológico para a soltura de agressor de mulher

Na quinta-feira (04/04/2019), a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) aprovou o Projeto de Lei do Senado nº 423/2018, que altera a Lei Maria da Penha, dispondo:

Art. 1º  Os arts. 20 e 24-A da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, passam a viger com a seguinte redação:

Art. 20 (…)

§2º Em qualquer caso, a revogação da prisão preventiva dependerá de laudo psicológico que verifique o grau de probabilidade de o agressor reincidir contra esta ou outras mulheres” (NR)

Art. 24-A (…)

§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança, sendo que a liberação do agressor, independentemente da estipulação ou não de fiança, dependerá de laudo psicológico que verifique o grau de probabilidade de o agressor reincidir contra esta ou outras mulheres.” (NR)

Agora o Projeto de Lei seguirá para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), para os procedimentos que poderão implicar no envio do mesmo à Câmara dos Deputados, com possibilidade de futura aprovação.

Ocorre, todavia, que as proposições do referido Projeto de Lei são inconstitucionais. Primeiramente, por violar o princípio da presunção de inocência (não culpabilidade), na medida em que parte da presunção de que o preso acusado de violência doméstica e familiar irá reincidir, salvo nas hipóteses em que o Laudo Psicológico a ser realizado venha a demonstrar o contrário, afastando a presunção de periculosidade do preso.

Na lição de Aury LOPES JR (2012, p. 778), “a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente)”, o que não ocorre em relação ao Projeto de Lei em questão, cujo texto legal contém duas premissas nas quais se empregam presunções de culpabilidade.

Primeiramente, pressupõe que o preso é culpado pelo fato delitivo a ser apurado na persecução penal, o que se de nota do termo “reincidir”, que exige uma prática criminosa anterior. Ou seja, tacitamente o Projeto de Lei está considerando o preso como culpado pelo fato que está gerando a sua prisão, sem o que não haveria como cogitar em repetição de nova prática criminal após a sua soltura.

Em segundo lugar, estabelece uma presunção geral de que todo o preso acusado de violência doméstica e familiar irá reincidir, salvo os casos em que o Laudo Psicológico venha a comprovar o contrário. No entanto, em consonância com o princípio da presunção de inocência, o correto seria presumir a ausência de probabilidade de reincidir, salvo que o Laudo Psicológico viesse a comprovar o contrário.

É notório, portanto, a violação do princípio da presunção de inocência.

Deflui, do princípio da presunção de inocência, não apenas a regra do in dubio pro reo, mas também a regra da liberdade no curso do processo, sendo a prisão preventiva uma medida cautelar excepcional, cabível apenas quando presentes os seus requisitos (indícios suficientes de autoria/participação e prova da existência do crime) e fundamentos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal).

Assim, embora a decretação da prisão preventiva possa decorrer de provável dano à garantia da ordem pública, para que o Juiz possa decretar a prisão cautelar essa probabilidade deve decorrer de dados reais (RJTJRGS, 117/51 – HC, Rel. Des. Ladislau Fernando Rohnelt), mas não de presunções legais e abstratas, típicas do nefasto Direito Penal de Autor.

No caso do Projeto de Lei em exame, parte-se do pressuposto de que a probabilidade do dano, ou seja, da prática de nova infração penal estaria sempre presente, tendo em vista a natureza do delito, presunção essa que somente se afastaria pela existência de um Laudo Psicológico favorável.

Com isso, a manutenção da prisão se dá, pelo Projeto de Lei, sem a prévia existência da comprovação de risco à garantia da ordem pública, subvertendo a regra da liberdade no curso do processo ao normatizar a prisão preventiva como uma medida não de exceção, mas compulsória até a realização do Laudo Psicológico.

Com isso, a prisão preventiva se estabelece sem a necessária fundamentação em elementos informativos concretos, o que é inaceitável num sistema penal garantista.

Importante, a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO:

A decisão que denegar ou decretar a prisão preventiva será sempre fundamentada, isto é, deve o Juiz realçar as provas da existência do crime (ou da sua inexistência, na hipótese de denegação), bem como os indícios suficientes de autoria (ou insuficientes, quando denegar o pedido).

Deverá também o Juiz demonstrar, com os elementos do processo ou do inquérito, a sua necessidade para garantia da ordem pública, como conveniência para a instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.” (TOURINHO FILHO, p.426).

Neste sentido, de longa data é o posicionamento do STJ, como se observa dos julgados abaixo:

Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 11. 127/MS. 

Rel.: Min. GILSON DIPP. Criminal RHC Homicídio qualificado. Prisão cautelar. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO. Necessidade da medida não demonstrada. Recurso provido. I – Exige-se concreta motivação de decreto de prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. II – Ordem concedida para revogar a prisão cautelar efetivada contra Cléber de Lima Vargas, determinando a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, mediante condições a serem fixadas pelo Julgador monocrático, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.” (STJ/DJU de 13/8/01, pág. 178).

Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 10754-PA

ReI.: Min. VICENTE LEAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. PRESSUPOSTOS. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. A prisão preventiva, medida extrema que implica sacrifício à liberdade individual, concebida com cautela à luz do princípio constitucional da inocência presumida, deve fundar-se em razões objetivas, demonstrativas da existência de motivos concretos susceptíveis de autorizar sua imposição. Meras considerações SOBRE A GRAVIDADE DO DELITO NÃO JUSTIFICAM A CUSTÓDIA PREVENTIVA, por não atender aos pressupostos inscritos no art. 312, do CPP.  Recurso ordinário provido. Habeas-corpus concedido.” (STJ/DJU de 04/06/01, pág. 252).

O Projeto de Lei nega o dever de tratamento citado por AURY LOPES JUNIOR (presunção de inocência), na medida em que aplica uma presunção de reincidência a ser afastada por futura perícia, dispensando o Poder Judiciário do dever da fundamentação baseada em provas existentes nos autos e que atestem o concreto risco de ofensa à garantia da ordem pública.

Ademais, a redação do Projeto de Lei é problemática ao empregar a expressão “grau de probabilidade de o agressor reincidir”, por duas razões:

1. No texto consta a expressão “reincidir” e não “praticar nova infração penal dolosa”, de forma que dará margem à dúvida sobre a possibilidade de aplicação da nova regra aos primários, tendo em vista que se os mesmos voltassem a praticar um novo crime contra a mesma ou outra mulher, não estariam cometendo conduta adequada ao termo “reincidir”.

Isto em razão do conceito de reincidência, previsto no artigo 63, do Código Penal:

Art. 63 – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

2. O termo “grau de probabilidade” ofende o princípio da legalidade, correspondendo a uma previsão subjetiva e que permite a formulação de qualquer conclusão.

Apenas para refletir: não há o grau de probabilidade de o preso morrer no curso do processo? Não há o grau de probabilidade dele ser vítima de um crime no curso do processo? Como também não há, sempre, um grau de probabilidade de qualquer acusado, em qualquer espécie delitiva, cometer uma nova infração penal dolosa ou culposa?

O presente texto não objetiva tecer críticas à política criminal de proteção decorrente da Lei Maria da Penha, mas ressaltar a necessidade de uma melhoria na determinação das medidas a serem adotadas, para que a proteção das mulheres se efetive com técnica jurídica e respeito aos princípios constitucionais aplicados ao Direito Penal.

REFERÊNCIAS

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 9ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2012.

TOURINHO FILHO, F.C., Processo Penal, V 01, 2008.


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Dévon Defaci

Advogado criminalista

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