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Autonomia da lavagem de dinheiro diante da corrupção passiva

Autonomia da lavagem de dinheiro diante da corrupção passiva

1. Corrupção passiva e o exaurimento do tipo penal

É de suma importância, ao falar sobre corrupção, principalmente para aqueles que não têm intimidade com o meio jurídico, esclarecer que o corrupto – ou, pelo menos, o acusado de, em tese, ter incorrido neste tipo penal – não é tratado de forma genérica. Ou seja, a corrupção é dividida em duas espécies: corrupção ativa (prevista ao art. 333 do Código Penal), que visa a pessoa do corruptor; e passiva (prevista ao art. 317 do Código Penal), visando o funcionário público corrompido (JESUS, 2015, p. 197).

Explicadas as espécies previstas no Código Penal Brasileiro, resta esclarecer que o presente artigo conter-se-á em explorar apenas a modalidade da corrupção passiva, em virtude de se buscar esclarecer a relação entre o recebimento indireto de vantagem indevida (previsto neste tipo) e a ocultação de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal (prevista no art. 1º, caput, da Lei n.º 9.613/98, que dispõe sobre o crime de lavagem de dinheiro). Na primeira impressão, pode não ser tão simples relacionar os dois núcleos dos tipos penais em análise, mas, no decorrer da explanação, o raciocínio se torna, gradativamente, mais factível.

Sendo sabido que o delito de corrupção passiva é formal, a doutrina destaca os três momentos da sua possível consumação, dependendo do modo como é posto em prática, quais sejam, solicitar, receber e aceitar, zelando aos verbos nucleares previstos no tipo penal (GRECO, 2017, p. 806). Assim, resta evidente que o recebimento da vantagem indevida – mesmo que em momento posterior – apenas caracteriza o exaurimento do crime, sem figurar nova espécie delitiva.

Entendendo-se de forma diferente da explanada acima, estar-se-ia concebendo a corrupção como delito de mera conduta, em vez de delito formal. É possível extrair tal raciocínio a partir da clara explicativa doutrinária:

A partir do exposto, torna-se possível afirmar, portanto, que a diferença entre os crimes formais e os de mera conduta reside no fato de que estes são delitos sem resultado, ao passo que aqueles possuem resultado, mas há uma antecipação de sua consumação pelo legislador, de forma que a mesma ocorra antes da produção efetiva deste resultado. (CALLEGARI, 2014, p. 24)

Conforme o exposto, devidamente amparado pela doutrina, o delito de corrupção passiva é formal, não sendo exigido o efetivo recebimento da vantagem indevida para sua consumação. Porém, ocorrendo o efetivo recebimento, mesmo que por interposta pessoa (o que é previsto código penal como recebimento indireto), haverá apenas o exaurimento do tipo penal, ou seja, o esgotamento do iter criminis.

2. Lavagem de dinheiro como tipo penal autônomo

Em um plano de conceituação, a precisa doutrina de Badaró e Botini, explica, de forma sintetizada, como se dá a atividade denominada de lavar o dinheiro ou bens com a intuição de posteriormente dar aparência lícita a estes. Os autores, amparados em Blanco Cordero, explanam da seguinte forma:

Nas palavras de Blanco Cordero é um “processo em virtude do qual os bens de origem delitiva se integram no sistema econômico legal com aparência de terem sido obtidos de forma licita”. Trata-se, em suma, do movimento de afastamento dos bens de seu passado sujo, que se inicia com a ocultação simples e termina com sua introdução no circuito comercial ou financeiro, com aspecto legítimo (apud BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 29)

Ainda, conforme Callegari e Weber, em uma definição mais técnica e guiada literariamente ao que traz a legislação:

Dentre os doutrinadores brasileiros, não há grandes discussões acerca da conceituação do delito de lavagem. No Brasil, a definição do tema está vinculada à tipicidade penal inscrita no art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/1998. A conduta referida no artigo mencionado consiste na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores oriundos, direta ou indiretamente, de infração penal (CALLEGARI, 2017, p. 11)

O ato de ocultar, previsto no art. 1º, caput, da Lei n.º 9.613/98, que trata sobre o crime de lavagem de dinheiro, prevê que deve haver o resultado material do crime ou contravenção penal antecedente, necessário à lavagem de dinheiro, para que possa se falar na incidência criminal em tela. Nesse sentido, nas palavras de Badaró e Bottini, “(…) o crime em comento, embora autônomo, guarda uma relação de acessoriedade material com uma infração antecedente” (2016, p. 97-98). Ou seja, se praticada a hermenêutica pura, conclui-se que não há relação direta formal com o delito antecedente, mas sim, com o resultado naturalístico.

Para que se torne mais propício o entendimento da explicação retro, cabe destacar que o verbo nuclear ocultar compreende a fase em que se afasta o objeto da lavagem da sua origem criminosa, dificultando a ligação entre ambos, para posterior reinserção deste no sistema econômico legal, através da dissimulação (VILARDI, 2004, p. 3).

Porém, o verbo nuclear ocultar pode levar, por vezes, o operador do Direito ao erro, mesmo sem percepção. Assim, estabelecendo uma ligação com o tópico anterior e guiando a discussão ao foco do presente artigo, a doutrina explana que o crime de lavagem de dinheiro poderá subsistir mesmo quando a infração antecedente trouxer em sua previsão típica o ato de ocultação (como é o caso da corrupção passiva, que descreve em seu caput “direta ou indiretamente”).

Entretanto, é necessária muita cautela nesses casos, pois, se restar comprovada somente a ocultação ou dissimulação que o tipo penal antecedente – necessário à lavagem de dinheiro – contemple, ocorrerá a consunção (ou absorção), que se faz aplicável quando um fato punível é previsto também em outro tipo penal de âmbito mais abrangente, aplicando-se somente a este. Além de tudo o que fora exposto, também há de se observar que na hipótese de um entendimento pela aplicação de concurso de crimes estar-se-ia afrontando ao princípio do non bis in idem (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 124-125).

3. Conclusão

Ante ao exposto, entende-se que o crime de lavagem de dinheiro é dependente do delito antecedente em caráter material, ou seja, submete-se à disposição de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Assim, o crime em tela poderá ocorrer mesmo quando a corrupção passiva for o crime antecedente e este houver se caracterizado de forma indireta (com a ocultação do agente), como prevê o art. 317, caput, do CP.

Na Ação Penal 470, em sede de embargos infringentes, o STF decidiu nesse sentido. Na decisão em comento, o Tribunal Pleno entendeu pela absolvição por atipicidade da conduta, tendo em vista que o recebimento da propina, de forma dissimulada, constitui apenas o marco consumativo da corrupção passiva. Destarte, restou alicerçado que a lavagem de dinheiro depende de atos de ocultação autônomos do produto do crime já consumado, não sendo permitido o consubstanciamento do iter criminis da corrupção passiva e da lavagem de dinheiro.


REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

CALLEGARI, André Luís. Teoria Geral do Delito e da Imputação Objetiva. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 14. ed. Niterói: Impetus, 2017.

JESUS, Damásio de. Direito Penal, 4º volume: parte especial: Crimes contra a fé pública a crimes contra a administração pública. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

VILARDI, Celso Sanchez. O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO E O INÍCIO DE SUA EXECUÇÃO. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 47, p. 11-30, Mar-Abr. 2004. Disponível aqui. Acesso em: 24 abr. 2019.


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Daniel Hartz Anacleto

Graduando em Direito

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