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Lavagem de dinheiro e cooperação privada

Lavagem de dinheiro e cooperação privada

Com a expansão global oriunda do crescimento demográfico em todos os países do globo terrestre adveio, como consequência da evolução intelectual e investimentos científicos, a maçante e acelerada evolução tecnológica, a qual possibilitou o aperfeiçoamento das práticas negociais cotidianas, sobretudo no tocante a facilitar a troca de bens e produtos. 

Neste contexto, porém, ao lado do aperfeiçoamento dos meios negociais que equacionam o menor esforço nas práticas comerciais e financeiras, verifica-se também o aumento da volatilidade da segurança nos tratos rotineiros que envolvem dinheiro, bens e capitais no geral, fator decorrente da crescente independência que os atores privados têm conquistado em relação ao controle estatal, impossibilitando que os responsáveis públicos pela vigilância da adequação das tratativas negociais às normas do direito interno possuam império vigilante sobre todas as promoções negociais que ocorrem em seu território. 

Por consequência do referido impeditivo prático, faz-se necessário que o Estado adote políticas baseadas na confiança depositada no setor privado, apesar de coações legais estabelecidas, gerando, portanto, uma espécie de confiança punitiva. 

No tocante às práticas de lavagem de capitais verificadas nas complexas e constantes operações financeiras e comerciais que ocorrem por diversos meios e instrumentos, impossibilitando, por estas razões, a adequada vigilância estatal, é imprescindível que o Estado conte com a cooperação de terceiros obrigados a comunicar às autoridades financeiras acerca da (possível) ocorrência de atos de lavagem de dinheiro, os quais enquadram-se, no mais das vezes, em descrições genéricas e abrangentes de condutas que poderiam indicar o cometimento do delito financeiro em comento. 

Referimo-nos, por óbvio, ao estabelecido no Art. 9, 10 e 11 da Lei 9.613/98, a qual estabeleceu que profissionais atuantes em setores considerados “sensíveis” para a prática de lavagem de dinheiro possuem a “obrigação de cooperar” com as autoridades públicas no momento em que verificam a prática de atos suspeitos de mascaramento de capitais, sob pena de terem contra si aplicadas medidas de caráter administrativo como a pena de multa, advertência e a cassação da autorização para o exercício da profissão. 

Tais medidas que devem ser adotadas pelo profissional atuante nos mencionados ramos são, em síntese, a aplicação do conceito administrativo-comercial “know your cliente”, baseado no conhecimento que o operador comercial e financeiro deve possuir das práticas e comportamentos comumente adotados por seu cliente para que possa, em razão deste conhecimento, identificar hábitos possivelmente delinquentes. 

Nesta conjuntura, cabe chamar a cátedra de Pierpaolo Cruz Bottini (2017, pag.44) sobre o tema exposto: 

Na esteira das normativas internacionais, a lei de lavagem de dinheiro brasileira estabeleceu regras de cooperação privada para o combate à lavagem de dinheiro. As pessoas ou instituições que atuam em setores considerados sensíveis ao crime, mais utilizados nos processos de reciclagem, tem obrigações de guardar e sistematizar as informações sobre os usuários de seus serviços (know your client), de informar autoridades competentes sobre atividades suspeitas de lavagem de dinheiro efetuadas através de suas instituições, e desenvolver sistemas de compliance e que facilitem o cumprimento das normas impostas. 

Deste modo, nota-se que determinados agentes enquadrados nos Arts. 10 e 11 da lei de lavagem de dinheiro possuem o dever de, para além de suas práticas comerciais típicas, vigiar a parcela criminosa não suportada pelo aparelhamento de segurança estatal, sob pena de comprometer a integridade da própria atividade ou instituição. 

Todavia, apesar lei de lavagem de capitais estabelecer a obrigação de cooperação a ser promovida pelo setor privado, colocando nas mãos do particular incabível responsabilidade e penalidades desproporcionais, as previsões exemplificativas das condutas que promovem a suspeita dos referidos atos não é fixada no mesmo instrumento normativo, mas, sim, por órgão diverso do Poder Legislativo, ao qual cabe “complementar” o dever de cooperação. 

Por conseguinte, atribuiu-se ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), extinto e agora ressuscitado, integrante, – neste momento – da estrutura do Banco Central, vinculado ao Poder Executivo da União, a responsabilidade de descrever, por meio de Cartas Circulares, os comportamentos ensejadores da intuição delitiva. 

Neste cenário, o COAF publicou, no dia 31 de janeiro de 2020, a Carta-Circular DC/BACEN nº 4001, a qual

Divulga relação de operações e situações que podem configurar indícios de ocorrência dos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, de que trata a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e de financiamento ao terrorismo, previstos na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016, passíveis de comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). 

O teor da mencionada Carta Circular exterioriza diversas situações práticas que podem ocorrer no cotidiano financeiro, sobretudo nas complexas rotinas bancárias, as quais, apesar de não indicarem com razoável grau de verossimilhança a prática de “reciclagem” de capitais, indicam, de acordo com o órgão de inteligência financeira, o cometimento do crime. 

Desta maneira, contudo, os órgãos estatais, além da já mencionada desproporcional responsabilidade atribuída ao operador financeiro de vigiar e comunicar as operações “suspeitas”, acabam por dimensionar demasiadamente o “dever de se explicar” às autoridades públicas acerca de todos os seus atos, muitas das vezes rotineiros, cuja prática é considerada indicativa de crime financeiro, engendrando um disparate intervencionista do Público nas tratativas particulares que, no geral, não representam qualquer risco à estabilidade econômico-financeira da nação. 

Além do exposto, o conteúdo material do ato emanado da unidade de inteligência financeira utiliza desmedidamente de descrições genéricas tais como “depósitos em espécies relevantes” (art.1º, “n”), “quantia significativa” (art.1º, III, “d”) e “valores significativos” (art.1º, III, “q”), dentre tantos outros. 

À vista de todo o exposto, considera-se que o posicionamento legislativo adotado pelo ordenamento jurídico pátrio em relação à cooperação obrigatória atribuída ao particular de vigiar as operações de seus clientes sobrecarrega de forma descabida a responsabilidade atribuída ao setor privado que, caso não consiga, ainda que por questões logísticas, comunicar às autoridades públicas o que lhe caberia, pode sofrer penalidades e, ainda, no mesmo contexto, estabelecer constante e desconfortável cautela no trato com as operações de seus clientes, colocando em risco, inclusive, a qualidade dos serviços prestados.


REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários a nova lei 9.613/1998, com as alterações da lei nº 12.683/2012. 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

COSTA, Alvaro Mayrink da. Curso de Direito Penal. Parte geral. 1. ed. São Paulo: GZ Editora, 2015.

FILIPPETTO, Rogério. Lavagem de dinheiro. Rio de Janeiro: Lumen Iuris. 2011.


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Leonardo de Tajaribe da Silva Jr.

Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal (UCAM). Pós-Graduando em Direito Penal Econômico (COIMBRA/IBCCRIM). contato: leonardotajaribeadv@outlook.com

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