Lavando a jato uma operação internacional
Por Ivan Jezler Júnior
O advento dos recursos digitais de investigação (e-mail, Skype, aplicativos de mensagens instantâneas) também abalou o cotidiano procedimental. A utilização desses métodos pela criminalidade global e organizada fez com que os órgãos responsáveis pela persecução penal se vissem obrigados a rever estratégias no jogo processual e as ferramentas de que dispõem.
A Rede Mundial de Computadores se apresenta como uma ferramenta, e não pode ser considerada um remédio universal para sanar a dúvida probatória e encontrar o tesouro da verdade (ir)real. Isso significa conceber o potencial probatório dos meios tecnológicos de investigação, sem deixar de reconhecer a incerteza que norteia a persecução penal e que permanece a mesma, modificando apenas os instrumentos para obtenção de uma verdade, ainda relativa, agora perseguida por meios extremamente voláteis. É a procura por outras “verdades”.
Nesse norte, a teoria da ubiquidade foi abraçada pelo legislador penal, como regra para incidência da jurisdição penal pátria, nos casos de extra e territorialidade prescritas no Código Repressivo.
Sob a mesma perspectiva, a definição da competência territorial da autoridade jurisdicional brasileira observa, como regra, a teoria do resultado, mas como simples critério de definição da seção ou foro competente.
Essas premissas não iludem os casos onde a ubiquidade se revela, não necessariamente no iter criminis, mas na duplicidade eletrônica, por conta de dados digitais armazenados em suportes sitiados no exterior, quando a competência penal ou processual para análise do fato penalmente relevante não ilidirá a necessidade de cooperação internacional para obtenção da fonte de prova.
A assistência jurídica internacional, espécie de cooperação internacional, é medida inexorável para coletar materiais eletrônicos sitiados no exterior, de forma a consignar justa causa à ação penal promovida no Estado requerente, seja por conduto da carta rogatória ou pelo auxílio direto.
Ocorre que, esse regime jurídico não tem sido adotado pelas autoridades jurisdicionais no Brasil, no tocante à coleta de dados armazenados fora do território nacional. O que se verifica é a inexistência de óbices fronteiriços, não apenas para a criminalidade transnacional, mas também para a coleta da prova digital pelos Órgãos de persecução penal.
No nascedouro da Operação Lava Jato, as supostas provas do delito estavam armazenadas além dos limites de nossa jurisdição, mas a competência para julgamento do fato penalmente relevante era da autoridade judicial nacional.
A motivação do decisum ressaltou que:
Nada há de ilegal em ordem de autoridade judicial brasileira de interceptação telefônica ou telemática de diálogos trocados entre pessoas residentes no Brasil e tendo por objetivo a investigação de crimes praticados no Brasil, submetidos, portanto, à jurisdição nacional brasileira. O fato da empresa que providencia o serviço de mensagens estar sediada no exterior, a RIM Canadá, não altera o quadro jurídico, máxime quando esta dispõe de subsidiária no Brasil e que esta apta a cumprir a determinação judicial, como é o caso, a Blackberry Serviços de Suporte do Brasil Ltda. A cooperação jurídica internacional só seria necessária caso se pretendesse, por exemplo, interceptar pessoas residentes no exterior, o que não é o caso, pois todos os acusados residem no Brasil. Não se tem, alias, notícia de que qualquer autoridade do Governo canadense tenha emitido qualquer reclamação quanto à imaginária violação do tratado de cooperação mútua. Oportuno lembrar que o descumprimento de compromissos internacionais geram direitos às Entidades de Direito Internacional lesadas e não, por evidente, a terceiros.
A posição decisionista ventilada teve por parâmetro, uma liberdade para ignorar as leis de outras nações e exigir a apresentação de conversas armazenadas no exterior, a provedores não nacionais, pelo fato do interlocutor ter residência no território nacional.
Frise-se que o desafio de desbravar princípios, regras e peculiaridades do direito penal e processual penal internacional, de forma a fazer valer a realização da justiça criminal pertence a todos os sujeitos procedimentais, juízes, promotores, delegados e advogados.
Não foi como entendeu o MPF na mencionada operação, nas atribuições exercidas no mesmo juízo federal revelado, consoante alegações da defesa técnica, o parquet federal primeiro coletou as provas obscuramente e, de maneira superveniente, solicitou cooperação internacional para lavar (a jato) um elemento probatório que já se encontrava sob sua tutela.
Nesse viés, ainda como alega os patronos dos imputados, consoante registrado pelo MP Suíço, uma mídia USB com informações de contas bancárias atribuídas a um dos acusados, foi entregue diretamente nas mãos de procurador da república, sem a obrigatória passagem pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional.
Sem constrangimento, posteriormente o órgão acusatório informou que as informações foram obtidas via canal de comunicação imediato, que enviou ao parquet pátrio, voluntariamente, os documentos apresentados (veja aqui).
A inobservância das regras previstas, atualmente, no Código de Processo e no Marco Civil para interação internacional na obtenção da prova, aplicáveis ao âmbito criminal, por conta da prescrição do art. 3º do CPP, contaminou a prova coletada e os elementos probatórios supervenientes umbilicalmente atrelados à fonte primária. Isso por um lado.
Por outro, se a defesa técnica não conheceu o percurso da evidência, no tocante ao caminho trilhado na proposição, coleta e preservação do dado probatório, não há como assegurar a integralidade e originalidade da prova, o que propicia a quebra da cadeia de custódia do vestígio, obtido de maneira unilateral.
A preservação mútua internacional dos direitos fundamentais e da ordem pública na coleta dos dados digitais exige a efetivação das regras de cooperação, como único meio de assegurar a higidez do recurso probante capaz de ultrapassar fronteiras.