A lavra clandestina e a extração mineral
A lavra clandestina e a extração mineral (Por Karla Sampaio e Rosa Marques)
Em sendo um ente transformador da natureza, o homem percebeu que deveria impedir o impacto destrutivo de suas ações, ainda que necessárias, para garantir-lhe a preservação e aos seus descendentes.
Para tanto, criou um sistema de normas para disciplinar a relação com o seu habitat, visando o uso racional e equilibrado da natureza e de seus recursos.
Aí surge o Direito Ambiental, técnica de preservação da natureza e controle social, sistematizado em regras administrativas, civis e criminais, já que também foi reconhecida constitucionalmente a sua essencialidade.
Pois bem.
A tutela ambiental é uma proteção difusa, na qual o direito é de “todos”, isto é, são indefinidos os sujeitos desse direito. A preservação ambiental passa a ser uma função e ao mesmo tempo uma obrigação do Estado e, como é sabido, quando as medidas de natureza civil não se tornam suficientes, entra em ação a proteção penal.
A razão para autorizar a tutela penal, que até então era promovida apenas na esfera administrativa, foi o da “lesividade da conduta”, simbolizada pelo dano ou perigo que ela representa para os bens ambientais.
Dentre os vários bens tutelados pela Lei Ambiental, a extração ilegal de recursos minerais é tipificada como crime na Lei nº 9605/98:
Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida. Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente.
Além do crime ambiental, a extração mineral irregular está prevista como delito de usurpação do patrimônio público, previsto no art. 2º da Lei nº 8.176/91:
Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Pena – detenção, de um a cinco anos, a multa. § 1º Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo.
Pode-se dizer, outrossim, que o tipo penal da “lavra clandestina” procura evitar que atividades potencialmente degradadoras operem sem chancela estatal, sendo a mineração atividade permitida, mas desde que devidamente controlada e autorizada. Como todos os demais delitos ambientais, a justificativa é a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
Sobre o tema muito se discutiu sobre o aparente conflito entre o art. 55 da Lei nº 9.605/98 e o artigo 2º da Lei nº 8.176/91. O primeiro diploma legal dispõe sobre as sanções penais e administrativas às condutas lesivas ao meio ambiente; o segundo define crimes contra a ordem econômica e cria o sistema de estoques de combustíveis.
Parte da doutrina não aceita essa dupla tipificação, face ao princípio do non bis in idem, alegando que o dispositivo da Lei nº 8.176/91 foi derrogado pelo art. 55 da Lei nº. 9.605/98, tratando-se, assim, de conflito de leis no tempo. Para esta corrente a Lei Ambiental, por ser especial, tutela também o patrimônio da União, além do meio ambiente.
A outra corrente, mais gravosa, entende que se trata de concurso formal de crimes. Compreende essa doutrina que o art. 2º da Lei nº. 8.176/91 tem por escopo a proteção de bens da União, e não o meio ambiente, já que na extração de recursos minerais há o evidente interesse econômico.
Infelizmente, os tribunais firmaram entendimento acerca da inexistência de conflito de normas, pois trata-se da tutela de bens jurídicos distintos: o art. 55 da Lei nº 9.605/98 protege o meio ambiente, e o art. 2º da Lei nº 8.176/91 defende o patrimônio público.
Outro reflexo da adoção dessa tese está na incompetência do Juizado Especial Criminal para o processo e julgamento da ação, em razão da pena máxima da Lei nº 8.176/91 ser de cinco anos, rechaçando a possibilidade de transação penal e suspensão do processo.
No Brasil, ocorrendo um dano ambiental com identificação de autoria, haverá a tríplice responsabilização do agente, pois concorrerão as esferas administrativa, civil e criminal.
Observamos, porém, que as penas se confundem, pois dessas três esferas acabam resultando penas pecuniárias e/ou obrigações de fazer ou não fazer, resultando em verdadeiro bis in idem.
A tríplice responsabilização nos parece existir na contramão aos princípios da economicidade e eficiência, pois uma mesma conduta tem o poder de movimentar três esferas da máquina estatal.
Compreendendo o Direito Criminal como ultima ratio, não é exagero afirmar-se que a Ação Civil Pública e a Ação de Improbidade Administrativa seriam instrumentos suficientes e eficazes para o trato da maioria das questões ambientais, restando ao Direito Penal o ataque a poucas e realmente criminosas condutas contra o meio ambiente.
Nos demais casos, a única pena criminal impingida ao infrator será o próprio processo criminal, especialmente pelo estigma que carrega, ou seja, o processo como um fim em si mesmo, algo inadmissível em um Estado Democrático de Direito.