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O legislador à brasileira e seu amor incondicional às masmorras medievais

O legislador à brasileira e seu amor incondicional às masmorras medievais

Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. E, entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão. (FOUCAULT, 2014, p. 224.)

Sim, este é um dos aspectos relevantes a serem apontados sobre a pena de prisão imposta aqueles que infringem as leis penais e o que parecia ser um avanço da humanidade deu lugar a inúmeros paradoxos, ainda sem respostas adequadas, dentre os quais o que mais me chama a atenção é: “como punir o transgressor, o ‘desviante’ sem permitir que os reflexos desta punição alcancem os familiares e a sociedade?”.

A prisão é somente um lado da história do encarceramento em massa e a “punição” obtida por uma sentença de aprisionamento irradia muito além dos muros da prisão e dos presos que se encontram cercados por eles (BROWN, 2017, p. 503).

Diante do quadro atual das condições de nosso sistema carcerário, reitero o que já expus em coluna anterior: há clara violação ao princípio da intranscendência[1] (ou da responsabilidade pessoal) uma vez que os efeitos das penas impostas atingem aos familiares de quem se encontra privado de liberdade; à saúde dos agentes estatais encarregados da guarda e monitoramento (problema em expansão vide o crescente número de suicídios de profissionais da área de segurança pública que tem se observado); à sociedade que sente a insegurança e que arca com os altos custos da manutenção de um sistema obsoleto, corrompido e inadequado e; aos governos que se sucedem em dar explicações vazias e em fazer promessas vãs.

Mas, como se já não fosse suficiente tudo o que se observa da precária situação em que estão nossas casas prisionais, há quem pretenda piorar ainda mais a situação. Com divulgação recente pelo site da Câmara dos Deputados e replicada pelos portais de notícia de todo o país e pelos sites jurídicos, o Projeto de Lei nº 10.825/2018[2], de autoria do Deputado Delegado (sic) Waldir do proeminente PSL/GO propõe, de forma velada, a legalização de prisões semelhantes às masmorras que vemos nos filmes que retratam a Idade Média, localizada geralmente nos subsolos dos palácios e castelos, sem as mínimas condições de habitabilidade e propícia a disseminação de doenças.

Alguns menos atentos podem objetar dizendo que é uma simples proposta de extinção do banho de sol. Respondo: não. Se prestarem atenção é bem mais do que isso. Explico e justifico.

A primeira alteração proposta pelo PL visa o inciso V do artigo 41 da Lei de Execução Penal – LEP em sua redação atual “V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;” para “V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho e o descanso”.

A segunda alteração recai sobre o artigo 83 da LEP, que dispõe:

‘O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva’ para ‘O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação e trabalho’.

Até este ponto observa-se adequação da redação proposta com a ementa do PL (e quando digo que há adequação não digo que concordo com a proposição, somente que o texto está de acordo), porém, é na próxima proposição que está o mais importante e ainda não falado pela imprensa, talvez por ausência de uma leitura mais acurada e técnica. As considerações serão feitas mais adiante, mas desde já adianto que não há como concordar com tal proposta medieva.

A LEP, em seu artigo 88 determina que:

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.

Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:

a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;

b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

Sabemos que, na atualidade e ainda por muito tempo, não há viabilidade de atender adequadamente o disposto na lei, mas quero chamar atenção dos leitores para a proposta apresentada pelo parlamentar que altera o parágrafo único, que passaria a ter o seguinte texto:

Parágrafo único. O condenado permanecerá na cela o tempo todo, admitindo-se sua saída apenas para o trabalho ou para receber a assistência prevista no art. 11 desta lei, vedado o banho de sol ou atividades recreativas.

O legislador à brasileira

Atenção para o mais importante e não tão visível: o legislador pretende suprimir da Lei de Execução Penal a exigência de que as casas prisionais brasileiras sejam salubres. Que tenham ventilação. Que sejam alcançadas pelos raios solares. Que tenham um mínimo de isolamento térmico. Isso nos remete de volta aos tempos medievais, para dizer o mínimo.

A ‘justificação’ apresentada pelo legislador é assombrosamente desprovida de qualquer técnica e, de certa forma, esquizofrênica, uma vez que tenta se fundamentar fazendo uma relação esdrúxula entre o ‘banho de sol’ e o ‘trabalho’. Afirma o deputado que a LEP, em seu artigo 31, obriga o condenado ao trabalho:

O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.

Meia-verdade. O que esquece o deputado, ou o que não leu, é a previsão do artigo 32, o artigo subsequente:

Na atribuição do trabalho deverão ser levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado.

Com certeza o legislador vive em um país com farta oferta de vagas de emprego, onde todos os cidadãos desfrutam de ocupações lícitas e regulares, sem espaço para o mercado informal de empregos. Eu vivo no Brasil, país em que cerca de 13 milhões de pessoas estão desempregadas ou fora do mercado formal.

Eu vivo em uma realidade em que os egressos do sistema prisional enfrentam, além da estatística contrária apontada acima, a desconfiança e os preconceitos enraizados e inclusive fomentados pelos atuais governantes brasileiros contra aqueles que etiquetam como “indesejáveis”.

Dentre a justificação saliento breve trecho cunhado com ardilosa ironia populista:

Grande parte da população brasileira tem uma rotina muito mais dura do que aquela que encontramos em um presidio. O cidadão acorda cedo, passa horas dentro de um ônibus para chegar ao seu destino, trabalha o dia inteiro, retorna para sua casa à noite, tendo apenas o final de semana para descansar e recuperar as forças para retomar sua rotina. Não há a excessiva preocupação com o lazer, a descontração e as atividades ao ar livre que se vê nos presídios em relação aos condenados.  

Concordo plenamente. Concordo tanto que sugiro que sejam propostos projetos de redução dos proventos de um deputado (ao nível dos salários médios da população brasileira), supressão dos diversos auxílios que recebem (ou extensão a todos os trabalhadores com os quais se ‘preocupam tanto’), desconto dos dias não trabalhados, estipulação de jornada de 40 horas divididas em 5 dias por semana (igual a de todos os trabalhadores) dentre tantos outros. E sustento com a mesma fundamentação:

Grande parte da população brasileira tem uma rotina muito mais dura do que aquela desfrutada pelos seus representantes legislativos, sem direito aos mesmos proventos, às mesmas regalias e à mesma falta de controle e fiscalização de suas atividades.

Nesta coluna me ative a alertar para a real intenção deste projeto de lei, não só de suprimir o ‘banho de sol’, mas, também de suprimir qualquer menção da LEP às condições mínimas necessárias à habitabilidade humana das dependências de uma casa prisional. Quanto aos efeitos psicológicos, de saúde física e morais que poderiam advir desta alteração me ocuparei em coluna porvir.

Acessem o site da Câmara dos Deputados e inscrevam-se para acompanhar os projetos de lei que lhe despertem interesse, ou a produção de seus eleitos. Conheçam quem são nossos deputados e a quais interesses servem. Não há como militar no Direito sem conhecer os meandros da política tupiniquim.


REFERÊNCIAS

BROWN, David. Encarceramento em massa. Tradução: Uriel Moeller. 495-518. In: CARLEN, Pat; FRANÇA, Leandro Ayres (orgs.). Criminologias alternativas. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017, p. 503.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014, p. 224.


NOTAS

[1] Princípio extraído do comando do artigo 5º, inciso XLV da CRFB/1988: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.

[2] Projeto apresentado em 04/09/2018 com a seguinte ementa: Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, para revogar o direito dos condenados ao banho de sol e dá outras providências. Situação: Aguardando Designação de Relator na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO). Disponível aqui. Acesso em: 4 jan. 2018.


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