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A legítima defesa e o crime de resistência no projeto de lei de Sergio Moro

A legítima defesa e o crime de resistência no projeto de lei de Sergio Moro

Hoje eu pretendo refletir sobre parte do projeto de lei apresentado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, especificamente no que diz com o instituto da legítima defesa e o crime de resistência.

Não irei me ater aos aspectos dogmáticos apenas, os quais talvez circundem as minhas observações, mas quero tentar aproximar a proposta de alteração legislativa do Ministro, da condenação proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação ao Brasil, no ano de 2017, no caso chamado Chacina na Favela Nova Brasília, especificamente por que foi a primeira condenação da Corte em relação ao Brasil no que diz com a temática específica da violência policial.

Mas, primeiramente, gostaria de ressaltar que propostas legislativas, isoladas de políticas executoras, não possuem o condão de alterar a realidade fática vigente. Leis são apenas uma das medidas a serem adotadas em termos de política criminal, as quais deveriam vir embasadas em estudos de impacto legislativo, como com maestria mostra a obra da Professora e Doutora Carolina Costa Ferreira, já citada aqui nesse espaço por mim.

O que mais se espera do Poder Executivo são ações que executem uma política de segurança pública, a qual pode vir aliada a uma alteração legislativa, mas que não se desfaz nela, até por que o que justamente está por detrás do chamado populismo punitivo, muitas vezes, é o anúncio ilusório de que a edição de uma norma penal ou processual penal será a solução para um problema intensamente complexo, o qual demanda atuação em diversos flancos.

Dito isso, vou me ater a três artigos do Código Penal, aos quais o projeto sugere modificações. O primeiro deles é o artigo 23 do Código Penal, o qual mantém a sua redação no caput que elenca as causas de exclusão da ilicitude, ou seja, as hipóteses em que se poderá afastar a ilicitude e, portanto, o crime, mas insere dois parágrafos, sendo que o primeiro repete a redação vigente de punição dos excessos que estava no parágrafo único, inserindo o parágrafo segundo, o qual possibilita a redução da pena pelo Juiz ou, inclusive, deixar de aplicá-la, quando o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.

Esse dispositivo, portanto, se aplica a qualquer das causas de exclusão da ilicitude e a qualquer pessoa que se encontre nessas condições, não apenas ao agente público, operando alteração no Código de Processo Penal também, para o fim de impedir a prisão, inclusive. Parece-nos que a sugestão pretende trazer ao texto legal a inserção do chamado excesso exculpante, já hoje existente quando da análise do excesso doloso e culposo, o qual gera a absolvição, quando, por exemplo, reconhecido.

Está aí uma ampliação legal que faz com que as mulheres possam afirmar que a alteração implicará no aumento do feminicídio, por que embora no contexto a ideia apresentada diga com o endurecimento contra o crime, nesse ponto, há uma nítida ampliação das possibilidades de se albergar o agente pela exclusão da ilicitude da sua conduta, não gerando punição.

O fato é que a redação do dispositivo na espécie, com expressões vagas, as quais precisam ser preenchidas, como escusável medo, surpresa ou violenta emoção, deixam uma margem de discricionariedade ao Julgador, introduzindo elementos normativos ao tipo penal, que ampliam a tipicidade, tal como os chamados tipos penais abertos, violando frontalmente o princípio da legalidade, base de um Estado de Direito, com previsão constitucional e legal.

O artigo 25 mantém a sua estrutura enquanto caput, o qual traz os requisitos necessários à configuração da legítima defesa, mas, no entanto, há a inserção de um parágrafo único, com dois incisos, nos quais, então, uma vez preenchidos os requisitos do caput, amplia-se as hipóteses de reconhecimento da legítima defesa tão-somente aos agentes policiais e de segurança pública.

O que é interessante nesse ponto é o fato de que a alteração legal de ampliação da excludente de ilicitude se dá unicamente ao agente estatal, sendo que o monopólio do exercício da força e da violência, nos Estados modernos, no marco do que nos ensina Max Weber, é do Estado, mesmo que se questione ou não a sua completude, o que dá margem a outras discussões.

Nesse sentido, Zaccone (2015) nos socorre:

Quais os limites em que se autoriza uma ação policial letal no marco do estado de direito no nosso país? A resposta está na construção da legítima defesa (…).

Ou seja, esses agentes, representantes do Estado, possuem um mandato legal para o uso da força, o que, no entanto, exigem limites, limites legais. E aqui, valem as palavras de Juarez TAVARES (2018):

A legítima defesa é ato individual, destinado a possibilitar à pessoa humana a defesa de bens jurídicos próprios ou de terceiros, que estejam sofrendo ou na iminência de sofrer uma lesão. (…) De conformidade com o art. 144 da Constituição, os agentes policiais estão incumbidos da defesa da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Com base nesse dispositivo, pode-se dizer que os agentes, quando executem atos de ofício no sentido da proteção da ordem pública, das pessoas e do patrimônio, estariam cumprindo um dever legal. O cumprimento desse dever está subordinado, no entanto, à proteção das pessoas, quer dizer, os agentes não podem se valer desse dispositivo para violar a legalidade que deve revestir sua atuação. A exigência da proteção das pessoas e não apenas da ordem pública implica uma contenção na execução dos respectivos atos de ofício. Se são atos de proteção, não podem ultrapassar os limites legais nem conduzir ao abuso de poder ou de autoridade. Nesse ponto, quando o agente público, no exercício da função, sofre uma agressão por parte de um particular, diversamente do que se regula com relação a outros sujeitos, deve atuar com maior moderação do que faria na condição pessoal. (…) Essa diversidade de tratamento entre o agente público e o particular não viola o princípio da igualdade, justamente porque o agente público, de modo diverso do particular, está sujeito ao dever legal de proteção a qualquer outra  pessoa, inclusive, quanto a bens jurídicos do agressor. (…) O princípio que deve vigorar é o de que se o Estado mantém um serviço de segurança, não pode desvirtuá-lo a ponto de violar sua própria  finalidade, que é a proteção dos cidadãos. (….).

E é aqui então que ingressa a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual consigna que a Comissão já teria recomendado ao Brasil uma investigação exaustiva, a ser conduzida por autoridades imparciais para que fosse possível a responsabilização dos agentes autores dos fatos ocorridos na oportunidade. Além disso, recomendou a extinção imediata da prática de registrar as mortes cometidas pelos agentes policiais como ‘resistência à prisão.

Também, a instituição de um sistema de controle externo e interno e de prestação de contas para tornar mais efetivo o dever de investigar, bem como que o Estado brasileiro treinasse suas forças policiais para que estas pudessem saber lidar com os setores mais vulneráveis da sociedade, uma vez que tais setores são alvos constantes da chamada seletividade penal e policial.

A Corte, por sua vez, reconhece que a violência policial representa um problema de Direitos Humanos no Brasil. Nesse sentido, relatório divulgado anteriormente pela Anistia Internacional, em fevereiro de 2015, já colocava o Brasil no topo dos países mais violentos do mundo, pois seriam pelo menos 130 homicídios por dia, sendo que a sensação de impunidade é incentivadora, uma vez que 85% dos homicídios não são solucionados no Brasil, citando como os principais fatores para a crise no Brasil a violência policial, registros de tortura e a falência do sistema prisional.

Ao longo da sua sentença, a Corte dá conta de que entre as vítimas fatais de violência policial, no caso brasileiro, estima-se uma predominância de jovens, negros, pobres e desarmados, bem como que o Brasil ainda em 1996 já teria reconhecido perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU que era preciso tomar medidas para acabar com a impunidade das violações de Direitos Humanos atribuídas a autoridades policiais, provocadas por um funcionamento excessivamente lento das engrenagens da justiça, fruto muitas vezes da incapacidade dos Estados de realizar uma investigação policial eficiente.

Dessa forma, a Corte acabou por decidir ser o Estado brasileiro responsável pela violação do direito às garantias judiciais de independência e imparcialidade da investigação, devida diligência e prazo razoável, estabelecidas no artigo 8.1 da CADH, em relação ao seu artigo 1.1, bem como pela violação do direito à proteção judicial, previsto no artigo 25 da CADH, também combinado com o seu artigo 1.1, e a integridade pessoal, na forma do artigo 5.1, combinado com o artigo 1.1 da Convenção.

Para tanto, determina ao Brasil o dever de conduzir eficazmente a investigação em curso sobre os fatos relacionados às mortes ocorridas na incursão de 1994, com a devida diligência e em prazo razoável, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis.

Além da publicação da sentença, o Brasil deverá proceder a um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional, com inauguração de placas em memória das vítimas; deverá publicar anualmente um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da Polícia em todos os estados do país, do qual deverá conter informação atualizada anualmente sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente que redunde na morte de um civil ou de um policial; a partir de um ano contado da notificação da presente sentença, o Estado brasileiro deverá estabelecer mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado.

No caso do RJ, o Brasil deverá estabelecer metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, bem como um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do RJ e a funcionários de atendimento de saúde, incluindo nesse ponto a sua jurisprudência a respeito do tema.

Por fim, o Brasil deverá adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela Polícia ou pelo Ministério Público, bem como o Estado deverá adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão ‘lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial’ nos relatórios e investigações da Polícia ou do MP em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial, sendo abolido o conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial, além do pagamento da indenização devida e fixada.

Nesse ponto, o projeto em questão, no entanto, altera o artigo 329 do Código Penal, o qual tipifica o delito de resistência, a fim tão-somente de aumentar a pena para seis a trinta anos de reclusão e multa, acaso da resistência resulte morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro.

E o que a Corte mais uma vez nos diz é que os Estados possuem um dever de garantir os direitos, enquanto obrigação positiva, ou seja,

Essa obrigação geral se vê especialmente acentuada em casos de uso da força letal por parte de agentes estatais. Uma vez que se tenha conhecimento de que os agentes de segurança fizeram uso de armas de fogo com consequências letais, o Estado também está obrigado a determinar se a privação da vida foi arbitrária ou não. Essa obrigação constitui um elemento fundamental e condicionante para a proteção do direito à vida que se vê anulado nessas situações. Em casos em que se alega que ocorreram execuções extrajudiciais é fundamental que os Estados realizem uma investigação efetiva da privação arbitrária do direito à vida reconhecido no artigo 4 da Convenção, destinada à determinação da verdade e à busca, captura, julgamento e eventual punição dos autores dos fatos. Esse dever se torna mais intenso quando nele estão ou podem estar implicados agentes estatais que detêm o monopólio do uso da força. Além disso, caso os fatos violatórios dos direitos humanos não sejam investigados com seriedade, seriam, de certo modo, favorecidos pelo poder público, o que compromete a responsabilidade internacional do Estado. O dever de investigar é uma obrigação de meios e não de resultado, que deve ser assumida pelo Estado como dever jurídico próprio e não como simples formalidade condenada de antemão a ser infrutífera, ou como mera gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual das vítimas, de seus familiares ou da contribuição privada de elementos probatórios. (…) A Corte lembra que a falta de diligência tem como consequência que, conforme o tempo vá transcorrendo, se prejudique indevidamente a possibilidade de obter e apresentar provas pertinentes que permitam esclarecer os fatos e determinar as responsabilidades respectivas, com o que o Estado contribui para a impunidade. (…).”

E mais adiante em sua sentença aduz que:

A Comissão solicitou que sejam aprovadas leis internas para prevenir, investigar e punir qualquer violação de direitos humanos resultante de atos de violência cometidos por agentes do Estado bem como a regulamentação jurídica dos procedimentos policiais que envolvam uso legítimo da força.

Assim, ainda que brevemente, por que o espaço não nos permite maior aprofundamento e análise da sentença, entende-se que as proposições legislativas nesse ponto estão na contramão das determinações vinculativas da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Há inconvencionalidade na espécie, o que deverá ser objeto de debate legislativo, o que faço votos que o seja.

Essa discussão deveria ir muito além da própria técnica, pois como nos diz Zaccone (2015), não quebramos o paradigma histórico do controle social violento no nosso país.

E repensar tudo isso significa acenar para o processo civilizatório. O contrário é retroceder.


REFERÊNCIAS

ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.


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Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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