Lei 13.245/16: Contraditório e Ampla Defesa na Investigação Criminal? (Parte III)
Por Francisco Sannini Neto
Na última coluna nós deixamos transparecer que os princípios do contraditório e ampla defesa foram fortalecidos na investigação criminal com a edição da nova lei 12.245/16. Em relação à ampla defesa, não vislumbramos campo para grandes discussões, sendo este princípio perfeitamente adequado a esta fase da persecução penal. Nas lições de Brasileiro de Lima (2013, p. 23), a defesa garante o contraditório e por ele se manifesta, afinal, a ampla defesa só é possível em virtude de um dos elementos do contraditório, qual seja: o direito à informação.
Dito isso, podemos afirmar que o investigado tem direito a ampla defesa em seus dois aspectos: a-) positivo – pode se utilizar de todos os meios que lhe permitam confrontar os elementos de prova que digam respeito a autoria ou materialidade da infração; b-) negativo – consiste na não produção de elementos de prova que possam lhe ser prejudiciais (v.g. não fornecimento de material gráfico para a realização do exame grafotécnico, não submissão ao exame do etilômetro etc…).
Note-se que a imposição de nulidade absoluta para as oitivas formalizadas com o cerceamento da participação do advogado é mais um reforço à ampla defesa na investigação. De igual modo, o artigo 7°, inciso XXI, “a”, do Estatuto da OAB, com as inovações trazidas pela lei em comento, permite que o advogado possa apresentar razões e quesitos, o que também vai ao encontro da ampla defesa e até do princípio do contraditório.
Por óbvio, estamos cientes da polêmica que envolve esse tema, sendo que a maioria absoluta da doutrina defende a inexistência do contraditório na fase de investigação preliminar. Não obstante, somos entusiastas de um ponto de vista que admite o referido princípio dentro do inquérito policial, mas com outra roupagem, em consonância com as características desse procedimento. Explicamos.
Primeiramente, não podemos perder de vista que o núcleo fundamental do contraditório estaria ligado à discussão dialética dos fatos, podendo este princípio ser separado em dois elementos: direito à informação e direito de participação. O contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação a atos que possam lhes causar prejuízo (Brasileiro de Lima, 2013, p. 18).
Para Nestor Távora e Rosmar Rodriguez Alencar (2011, p. 58), o princípio do contraditório é traduzido pelo binômio ciência e participação, impondo que “às partes deve ser dada a possibilidade de influir no convencimento do magistrado, oportunizando-se a participação e manifestação sobre atos que constituem a evolução do processo”.
Mais do que uma oportunidade de ação e reação, o contraditório garante que toda a persecução penal seja desenvolvida com a observância da igualdade entre as partes, no sentido de que os contendores tenham a mesma força (paridade de armas). Feitas essas breves considerações, salientamos que, de acordo com a maioria da doutrina, o contraditório não seria aplicado ao inquérito policial, pois o dispositivo constitucional que lhe serve de suporte é expresso ao afirmar que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art.5°, inc.IV, da CF).
Nesse sentido, como o dispositivo faz menção a processo judicial ou administrativo, o contraditório não se aplicaria ao inquérito policial, que é um procedimento administrativo. Ademais, os opositores da tese defendida neste estudo também argumentam que o artigo se refere aos litigantes e aos acusados, o que afastaria a figura do investigado.
Entretanto, tais argumentos não se sustentam diante de uma análise mais detida sobre o assunto. Primeiramente, salientamos que o legislador em diversas ocasiões se confunde ao empregar termos técnicos, como fez ao tratar “Do Processo Comum”, “Do Processo Sumário”, quando, na verdade, se referia aos “procedimentos”.
Sobre o termo “acusados”, Lopes Jr. (2013, p. 470) nos ensina que ele não pode limitar a aplicação do contraditório no inquérito, senão vejamos:
“Sucede que a expressão empregada não foi só acusados, mas, sim, acusados em geral, devendo nela ser compreendidos também o indiciamento e qualquer imputação determinada, pois não deixam de ser imputação em sentido amplo.”
Vale lembrar, ainda, que, com relação aos direitos fundamentais, a interpretação da norma deve ser sempre ampliativa e não restritiva, o que ratifica a aplicação do contraditório no procedimento em questão, desde que, é claro, não inviabilize as investigações.
Nesse contexto, Rogério Lauria Tucci (2004, pp. 357-360):
“a contraditoriedade da investigação criminal consiste num direito fundamental do imputado, direito esse que, por ser “um elemento decisivo do processo penal”, não pode ser transformado, em nenhuma hipótese, em “mero requisito formal”.
Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2011, p. 98) explicam que a ideia de que contraditório exige partes é falsa, isto, pois:
“Contraditório é o direito de participar de um procedimento que lhe possa trazer alguma espécie de repercussão jurídica; não tem como pressuposto a existência de partes adversárias. Se há possibilidade de defesa, é porque há exercício do contraditório; se eu me defendo, estou participando do procedimento; estou, portanto, exercitando o meu direito de participação”.
Devemos ressaltar, todavia, que quando falamos em contraditório no inquérito policial, nos referimos, principalmente, ao seu primeiro momento, qual seja: a informação. Isto porque não se pode vislumbrar a plenitude do contraditório numa fase pré-processual.
A própria Lei 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal na parte que trata das prisões e medidas cautelares diversas, estipulou em seu artigo 282, §3°, o contraditório antes do deferimento da medida, desde que não haja risco para a sua eficácia ou se trate de uma situação de urgência.
Diante dessa determinação legal, considerando que diversas medidas cautelares são decretadas durante a fase pré-processual, concluímos que a intenção do legislador foi nortear a condução de toda a persecução penal, inserindo o princípio do contraditório no inquérito policial sempre que não houver risco à eficácia das investigações.
No mesmo sentido, a Lei 12.760/2012, que alterou o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, onde está tipificado o crime de embriaguez ao volante, estipulou em seu conteúdo que o motorista terá direito a contraprova. Em nosso entendimento, trata-se de mais um exemplo de aplicação do princípio do contraditório na fase preliminar de investigação.
A nova Lei 13.245/16, ora em análise, é mais um exemplo de como o legislador vem tentando democratizar as investigações criminais, viabilizando a maior participação possível da defesa nessa fase, seja por meio do acompanhamento das oitivas de investigados, seja através da apresentação de quesitos ou razões.
Aliás, nos termos da nova lei, o advogado tem a prerrogativa de fazer perguntas ao investigado ou às testemunhas durante o inquérito policial, o que é extremamente salutar. É claro que a participação da defesa nesses atos deve se dar de maneira residual, cabendo ao delegado de polícia, como presidente da investigação, o protagonismo na inquirição das partes, diferentemente da fase processual, onde o juiz, como presidente do processo, deve atuar de forma residual e complementar às partes interessadas.
De todo modo, fica claro que a inovação legislativa abre, ainda que de forma comedida, as portas da investigação criminal à defesa, o que, inclusive, fortalece o princípio da isonomia ou paridade de armas, uma vez que o Ministério Público acompanha o procedimento de maneira integral. Percebe-se, portanto, que agora o advogado tem mais condições de influenciar no resultado final das investigações, sendo esta uma das características do contraditório.
Para Fredie Didier Jr. (2007, p. 43), o princípio do contraditório deve ser aplicado nos âmbitos jurisdicional, administrativo e negocial. Demais disso, o processualista consigna que o contraditório é uma garantia que se desdobra em duas facetas. A mais básica, que o autor reputa como formal, é a da participação, a garantira de ser ouvido, de ser comunicado, de poder falar no processo. Isso seria o mínimo, constituindo, no entanto, o que a maioria da doutrina entende por contraditório. Mas não é só isso, senão vejamos:
“Há o elemento substancial dessa garantia. Há um aspecto, que eu reputo essencial, denominado, de acordo com a doutrina alemã, de ‘poder de influência’. Não adianta permitir que a parte, simplesmente, participe do processo; que ela seja ouvida. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado.”
É mister reiterar, todavia, que em virtude das características da investigação criminal, não podemos falar em um contraditório pleno nesta fase. O que nós defendemos é o chamado contraditório possível, que deve desenvolver-se nos limites em que não possa prejudicar a eficácia do inquérito policial ou outro procedimento investigativo, haja vista que, em certos momentos da persecução penal, o Estado deve se valer de ações sigilosas no intuito de chegar à verdade dos fatos.
Não é outra a orientação de Scarance Fernandes (1999, p. 51) ao afirmar que
na fase indiciária justifica-se alguma desigualdade em favor do Estado, a fim de realizar melhor colheita de indícios a respeito do fato criminoso. É o que diz Jimenez Asenjo, em trecho citado por Tourinho Filho: ‘É difícil estabelecer igualdade absoluta de condições jurídicas entre o indivíduo e o Estado no início do procedimento, pela desigualdade real que em momento tão crítico existe entre um e outro. Desigualdade provocada pelo próprio criminoso. Desde que surge em sua mente a ideia do crime, estuda cauteloso um conjunto de precauções para subtrair-se à ação da Justiça e coloca o Poder Público em posição análoga à da vítima, a qual sofre o golpe de surpresa, indefesa e desprevenida. Para estabelecer, pois, a igualdade nas condições de luta, já que se pretende que o procedimento criminal não deve ser senão um duelo nobremente sustentado por ambos os contendores, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem nos primeiros momentos, apenas para recolher os vestígios do crime e os indícios de culpabilidade do seu autor.
Em conclusão, reforçamos nosso entendimento no sentido de que a nova lei constitui um avanço para a investigação criminal, democratizando ainda mais esse procedimento, dando mais transparência aos atos praticados nesta fase da persecução penal e fortalecendo os elementos de prova nela produzidos. Na qualidade de delegado de polícia, continuo sonhando com o dia em que a Defensoria Pública se fará presente nas delegacias de polícia durante os plantões. As policiais judiciárias, hoje inteiramente pautadas no respeito aos direitos humanos, não têm nada para esconder. Estamos de portas abertas para a defesa!
REFERÊNCIAS
BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. 2. ed. Niterói: Impetus, 2013.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 7. ed. Bahia: JusPodivm, 2007.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999.
LOPES JR., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013.
TÁVORA, Nestor; RODRIGUES ALENCAR, Rosmar. Curso de Processo Penal. ed.6ª. Bahia:JusPodivm, 2011.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2.ed. São Paulo: RT, 2004.