Lei Maria da Penha e o Delegado de Polícia
Por Francisco Sannini Neto
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar nº 07/2016, cujo objetivo principal é dar mais eficácia à Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, assegurando, consequentemente, os interesses e direitos das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
É oportuno destacar que a lei em questão surgiu com a finalidade de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, em consonância com o artigo 226, §8º, da Constituição da República, com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, entre outros tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Trata-se de um caso típico de ação afirmativa ou discriminação positiva[1], caracterizado pelo fenômeno da “especificação do sujeito passivo”, onde se permite que o Estado adote medidas especiais de caráter temporário, visando fomentar o processo de igualização entre os sexos, haja vista que através das estatísticas verificou-se que a mulher encontra-se numa posição de vulnerabilidade em relação ao homem dentro do ambiente doméstico e familiar, sendo vítima constante das mais variadas formas de violência.
Nesse cenário, a Lei Maria da Penha nasceu não apenas com a pretensão de reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher, mas, sobretudo, com a finalidade de atuar como um verdadeiro instrumento de prevenção e assistência às mulheres nessas condições.
Para tanto, a lei elencou nos seus artigos 22, 23 e 24 as chamadas “medidas protetivas de urgência”, sempre com o objetivo de atender aos interesses da vítima, viabilizando a sua necessária assistência ou restringindo alguns direitos do agressor.
Ocorre que, na prática, tais medidas não gozam da eficácia necessária, uma vez que na sua concepção legal só podem ser decretadas pela autoridade judicial. Em outras palavras, as medidas protetivas de urgência estão sujeitas à cláusula de reserva jurisdicional. Percebe-se, assim, que a sua adoção depende de um rito procedimental extremamente burocrático e que, não raro, demonstra-se absolutamente incompatível com o seu caráter de urgência.
Parece-nos que o espírito da lei foi o de dar respaldo integral e imediato à mulher vítima de violência doméstica e familiar, inclusive em virtude das especificidades do caso, afinal, na maioria das vezes autor e vítima convivem sob o mesmo teto. Ora, se a medida protetiva é de natureza urgente, isso significa que a sua análise e eventual adoção deve ser feita de maneira imediata, pois, do contrário, a própria razão de existência desse estatuto protetivo da mulher estaria ameaçada, como, na verdade, está. Explicamos!
Durante nossa carreira como delegado de polícia, já nos deparamos inúmeras vezes com situações de flagrante delito de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo que na maioria das vezes a manutenção da liberdade do agressor se mostrava incompatível com os interesses da vítima e com as finalidades da Lei Maria da Penha.
Isto, pois, os crimes mais comuns praticados no âmbito da Lei 11.340/06 (lesão corporal, injúria, ameaça, dano etc.) são passíveis de liberdade provisória mediante fiança concedida pela própria autoridade policial. Desse modo, se, por exemplo, o marido, muitas vezes embriagado ou drogado, agride a esposa durante a madrugada, no recanto do lar, e ela não dispõe de outro lugar para ir, caso a fiança seja arbitrada e devidamente recolhida, nada impede que o agressor volte a praticar atos de violência contra a esposa.
Nesse contexto, visando assegurar a integridade física e psicológica da vítima, evitando, outrossim, a prática de novas infrações penais em seu prejuízo, em muita situações é recomendável que o delegado de polícia deixe de conceder fiança ao preso em flagrante com base no artigo 324, inciso IV, do Código de Processo Penal, vez que, conforme exposto, estariam presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, inclusive porque a autoridade policial não dispõe de medida cautelar diversa.
É nesse cenário que surge em boa hora o PLC nº 07/16, que altera a Lei 11.340/06, dispondo sobre o direito da mulher vítima de violência doméstica e familiar ter um atendimento policial e pericial especializado, possibilitando, ainda, que o próprio delegado de polícia decrete algumas medidas protetivas de urgência.
De acordo com o projeto[2], verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, a autoridade policial, preferencialmente da Delegacia de Defesa da Mulher, poderá aplicar, provisoriamente, até deliberação da autoridade judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22, inciso III, e artigo 23, incisos I e II, da Lei Maria da Penha, intimando desde logo o ofensor.
Assim, tão logo tenha ciência da prática do crime e de suas circunstâncias, o delegado de polícia poderá decretar, por exemplo, a medida protetiva que proíba o agressor de se aproximar da vítima, de seus familiares ou testemunhas, ou manter qualquer tipo de contato com ela (seja pessoalmente, por telefone, mensagem ou e-mail), ou, ainda, de frequentar determinados lugares (v.g. o local de trabalho da vítima).
Da mesma forma, visando proporcionar a assistência imediata à mulher, a autoridade policial também poderá determinar o seu encaminhamento a programas oficiais ou comunitários de proteção e atendimento, além de reconduzi-la ao lar, após, é claro, o afastamento do agressor.
Não temos dúvidas de que essa inovação legislativa será adequada e suficiente para evitar a prática de novas infrações penais contra a mulher, proporcionar sua assistência imediata e ainda reprimir a violência praticada. É preciso deixar claro que diante de agressões tão graves a direitos tão relevantes, o Estado não pode se dar ao luxo de esperar, devendo a resposta ser incontinenti e adequada ao caso concreto.
Salto aos olhos, nesse contexto, a figura do delegado de polícia como o primeiro garantidor dos direitos e interesses da mulher vítima de violência doméstica e familiar, afinal, esta autoridade está à disposição da sociedade vinte e quatro horas por dia, durante os sete dias da semana, tendo aptidão técnica e jurídica para analisar com imparcialidade a situação e adotar a medida mais adequada ao caso.
Não nos convence o argumento de que medidas dessa natureza devem ficar a cargo exclusivamente do Poder Judiciário, pois situações urgentes merecem respostas imediatas. Ora, se o delegado de polícia é a autoridade com atribuição legal para decretar prisões em flagrante, uma medida que restringe por completo um dos direitos fundamentais mais valiosos ao indivíduo, qual seja, a liberdade de locomoção, por que não poderia decretar medidas menos incisivas como as protetivas de urgência?!
Na verdade, a aprovação desse projeto de lei representará um avanço não só para a tutela dos direitos das vítimas de violência doméstica e familiar, mas também para os interesses dos próprios agressores, vez que, conforme exposto, o delegado de polícia terá à sua disposição outras ferramentas diversas da prisão. Assim, ao invés de deixar de conceder liberdade provisória mediante fiança ao preso em flagrante, a autoridade policial poderá lavrar o auto, conceder a fiança e decretar, incontinenti, a medida protetiva que o proíba de se aproximar da vítima. Se ainda assim o ofensor desrespeitar essa medida, caberá ao delegado de polícia representar pela decretação de sua prisão preventiva, caso nenhuma alternativa seja suficiente ou adequada.
Vale consignar que nos termos do projeto de lei em análise, o delegado de polícia terá o prazo de vinte e quatro horas para dar ciência ao juiz sobre as medidas protetivas aplicadas, ocasião em que a autoridade judicial poderá revê-las ou mantê-las, conforme seu entendimento. Percebe-se, destarte, que não se está retirando do magistrado a possibilidade de verificar a medida mais adequada ao caso, o que demonstra o caráter provisório da decisão exarada pela autoridade policial.
De todo modo, é mister ressaltar que ao analisar o caso concreto, a autoridade policial deve agir com cautela e buscar reunir todos os substratos fáticos e jurídicos que justifiquem a adoção da medida, uma vez que ela repercutirá diretamente nos direitos fundamentais do agressor. É imperioso, portanto, que o decreto de medida protetiva pelo delegado de polícia seja precedido de uma decisão fundamentada, inclusive para que o Poder Judiciário e o Ministério Público possam fiscalizar o seu ato, respeitando sempre a convicção de cada agente estatal.
Pode até ser que numa análise míope e enviesada do PLC 07/16, alguns se atrevam a dizer que essa inovação legislativa resultará na redução dos direitos da vítima, sob o argumento de que a adoção das medidas protetivas ficaria concentrada na figura da autoridade policial. Contudo, é preciso destacar que o novo artigo 12-B deve ser interpretado em conjunto com os artigos 11 e 12, da Lei 11.340/06. Em outras palavras, se o delegado de polícia entender pela necessidade da imediata adoção de alguma medida protetiva, ele deve primeiramente informar a vítima sobre os seus direitos para que ela possa se manifestar sobre a medida que melhor lhe convier.
Se, por outro lado, o delegado de polícia entender que não é o caso de se decretar alguma das medidas protetivas de urgência, ainda assim ele deverá encaminhar o pedido da vítima ao Poder Judiciário. Trata-se do fenômeno da dupla cautelaridade[3], onde o delegado de polícia é responsável apenas por uma providência inicial, sendo a última palavra sempre do magistrado competente. Frente ao exposto, conclui-se que o projeto de lei em questão apresenta melhorias significativas não apenas para as vítimas de violência doméstica e familiar, mas também para o próprio agressor.
Temos a convicção de que é chegado o momento em que interesses corporativos devem ser deixados de lado em respeito aos direitos das vítimas, direitos estes, vale dizer, que são assegurados pela Constituição da República e por tratados internacionais ratificados pelo Brasil. O delegado de polícia com formação jurídica tem sua origem umbilicalmente ligada ao Poder Judiciário, devendo agir como uma espécie de longa manus do juiz na tutela dos direitos e garantias fundamentais.
Se o objetivo da Lei Maria da Penha é coibir e eventualmente erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, dando-lhe assistência imediata e adequada, é preciso dar efetividade as medidas protetivas e finalmente respeitar o seu caráter de urgência. Para tanto, é indispensável a presença de uma autoridade com aptidão jurídica para analisar incontinenti a necessidade da sua adoção, seja nas madrugadas frias de inverno, nos finais de semanas ou feriados. Se o delegado de polícia não for autorizado por lei a fazer isso em defesa da sociedade, então que se criem plantões judiciários permanentes. O que não podemos admitir é que as vítimas permaneçam desprotegidas e desamparadas pelo Estado.
NOTAS
[1] Nos termos da Ação Direta de Constitucionalidade 19, proposta pela Presidência da República.
[2] “Art. 12-B. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, a autoridade policial, preferencialmente da delegacia de proteção à mulher, poderá aplicar provisoriamente, até deliberação judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 desta Lei, intimando desde logo o ofensor. § 1º O juiz deverá ser comunicado no prazo de vinte e quatro horas e poderá manter ou rever as medidas protetivas aplicadas, ouvido o Ministério Público no mesmo prazo. § 2º Não sendo suficientes ou adequadas as medidas protetivas previstas no caput, a autoridade policial representará ao juiz pela aplicação de outras medidas protetivas ou pela decretação da prisão do autor. § 3º A autoridade policial poderá requisitar os serviços públicos necessários à defesa da vítima e de seus dependentes.”
[3] Expressão adotada pelo prof. Ruchester Marreiros Barbosa ao tratar da audiência de custódia. Disponível aqui.