Lei Maria da Penha para homens?
Lei Maria da Penha para homens?
Está claro que aplicar a Lei 11.340/06 para homens não faz o menor sentido, mas existe algum remédio jurídico no ordenamento que albergue os homens contra mulheres que praticam violência doméstica e familiar? É isso que vou responder.
Não traremos fórmulas absolutas nesta resposta, o objetivo é analisar a questão com base na legislação pátria e a depender do caso, mostrar para o operador se existe ou não solução jurídica para o caso posto a julgamento [1].
O tema é intrincado e as posições doutrinárias e jurisprudenciais são as mais variadas possíveis. Assim, hoje sobre a matéria teríamos em mãos a Lei Maria da Penha – 11.340/06, o Código Civil e o Código de Processo Penal, diplomas que nos oferecem algumas possibilidades de proteção, mas bem pontuais. Neste contexto, inicialmente vamos tratar de limitar a matéria para tão somente, os casos de violência doméstica e familiar praticados contra homem por uma mulher.
Pois bem, todos nós conhecemos o porquê a Lei Maria da Penha foi promulgada, já assentado em inúmeros julgados do STF e STJ. De fato penso ser impossível aplica-la ao gênero masculino, muito embora corra o país notícias de que ela vem sendo empregada tendo em vista a omissão do legislador (veja aqui, aqui e aqui). Nada contra quem esteja aplicando a Lei 11.340/06 até porque o direito não socorre a quem dorme, e o Juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico {art. 140, CPC}.
Muitos magistrados, sensíveis aos fatos relatados e diante da evidente ofensa aos direitos da dignidade da pessoa humana, são obrigados a aplicar a Lei Maria da Penha para resguardar pelo menos o direito de não aproximação, já que as demais normas existentes não cabem ao caso. Não resolve, mas minimiza o enfrentamento. Na imensa maioria das vezes nestes casos a prática supera a teoria
. A coordenadora do movimento permanente de combate à violência doméstica e familiar no CNJ afirma que, embora não seja aplicada a lei em estudo aos homens, os juízes tem utilizado o art. 22, inc. II, da mencionada lei para emprega-lo contra mulheres infratoras [2].
Neste ponto, comungo com parcela da doutrina que aduz ser impossível aplicar a Lei Maria da Penha para homens, salvo naqueles casos em que o gênero masculino não se vê como tal, e sim como uma mulher. A lei é bem clara ao declarar que os mecanismos criados são para coibir a violência doméstica e familiar ‘contra a mulher’, logo, não há espaço para modulações já disseram STF e STJ.
Mais a frente demonstro que existem outras hipóteses que o juiz ou o advogado poderá utilizar que não a Lei Maria da Penha. Aplicar a Lei 11.340/06 para homens é um ativismo judicial a meu ver, nem de perto há que se falar em interpretação conforme ou diálogo das fontes. Como retrata Luiz Flávio Gomes com excelência, trata-se de um ativismo judicial revelador,
o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, é no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra lacunosa.
Mesmo assim, ocorre uma inovação no ordenamento ao aplica-la, pois se o desejo do legislador fosse favorecer também o gênero masculino teria feito expressamente na lei. Se não o fez, é porque o intuito era proteger apenas o gênero feminino objeto de violência doméstica e familiar. O que pode ser feito, é utilizar conceitos e orientações refletidas na Lei 11.340/06 – que são dedicados às mulheres, para emprestar aos homens, como uma forma de protege-los enquanto o legislador não cria a norma. Agora, aplicar a Lei Maria da Penha in concreto não vejo como.
Lei Maria da Penha para homens?
Vencida essa etapa, vamos analisar as regras do Código Civil: há aqui alguma norma que converge aos interesses dos homens em situação de violência doméstica e familiar? Sim e não. Calma, vamos organizar essa reflexão. Penso que primeiramente temos que separar duas situações bem pontuais:
- O sujeito que ainda não teve decretada a homologação da dissolução da união pelo juiz;
- O sujeito que já teve a dissolução da união homologada pelo juízo, mas que por qualquer outra circunstância ainda litiga com a ex-esposa/ex-companheira. Exemplo, aqueles casos que fica a partilha dos bens e os alimentos para serem solvidos pós-dissolução conjugal.
Na primeira hipótese o remédio a ser utilizado é a ação cautelar de separação de corpos, que pode ser empregada tanto para retirar do lar comum o cônjuge agressor, como para proibir a aproximação do outro, para os casos que um dos consortes já abandonou o lar.
O problema se instala é no segundo caso, pois homologada a dissolução da união pelo juízo, não existe mais a possibilidade de utilizar a ação cautelar de separação de corpos, porque certamente um dos cônjuges não estará mais residindo no mesmo domicílio, salvo quando mesmo dissolvida a união de fato e homologada pelo juízo os consortes ainda vivem juntos, no mesmo teto. Isso não é comum, mas acontece em raros casos.
Nesse contexto, aí sim caberia a ação cautelar de separação de corpos. O tema aqui proposto na análise do segundo caso, trata daquelas hipóteses em que homologada a dissolução um dos consortes se retira do lar. Qual seria a solução jurídica para este caso?
Já vimos que a Lei Maria da Penha e a ação cautelar de separação de corpos não poderão ser utilizadas, logo, teríamos que examinar a única hipótese que ainda nos resta: o Código de Processo Penal ou, como proponho lateralmente, uma análise conjunta à luz dos princípios norteadores da Lei 11.340/06, da ação cautelar de separação de corpos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Primeiro vamos à Lei Adjetiva Penal: antes de qualquer aventura jurídica, há que se ter em mente que necessariamente deve existir um procedimento que investigue um determinado crime. Do contrário, não há menor possibilidade de um advogado atravessar uma petição solicitando que sejam aplicadas medidas cautelares diversas da prisão, a uma pessoa que sequer cometeu um delito. É inimaginável uma situação como essa, penso que o pleito se oferecido já nasceria morto.
Agora, se existe um procedimento inquisitorial em andamento, referente ao enquadramento da agressora mulher em um dos tipos penais existentes ou uma queixa-crime, aí sim, o juiz poderá analisar um pedido do gênero.
Mediante provas robustas e fatos que alicercem o reclamo, é possível que o juiz, à luz de agressões cometidas por uma mulher contra um homem, com base no art. 319, do Código de Processo Penal, impor à vitimizadora uma das cautelares diversas da prisão, mas, volto a frisar, é preciso que a agressora tenha praticado um crime contra o ex-companheiro/esposo.
Como ressalta a primeira vista não há dúvidas a respeito, a questão é bem simples. Praticado o delito, promove-se a denúncia ou a queixa-crime e abre-se a possibilidade de pleitear as medidas cautelares do art. 319. Suponhamos agora um caso de dissolução da relação conjugal, homologada pelo juízo, e não há crime praticado pela ex-mulher, pelo menos do ponto de vista formal.
O ex-consorte homem não vive sob o mesmo teto que a ex e mesmo assim ela continua praticando violência doméstica e familiar contra o ex-companheiro não tipificada em nenhum tipo penal incriminador – chegamos agora ao ponto que eu refuto mais relevante. Indubitavelmente como já vimos a Lei Maria da Penha, o Código Civil e o Código de Processo Penal não poderão ser aplicados – o caso não comporta nenhum dos regramentos.
O primeiro porque a vítima é do gênero masculino; o segundo porque não cabe ação cautelar de separação de corpos pelos fundamentos lançados anteriormente; e o terceiro porque não há crime praticado. Como se socorre esse homem vitimizado se não existe previsão legal para tanto? Bom, para caracterizar o “ambiente criminoso” e as “formas de violência doméstica e familiar”, pegaremos emprestado os artigos 5° e 7° da Lei 11.340/06, que caem como uma luva no tema – recomendo a leitura para exata compreensão deste artigo.
Inicio minha proposta aduzindo que salvo aqueles casos em que o ex-cônjuge ainda mantêm uma relação afetuosa com os parentes do outro, a utilização do conceito do art. 5°, inc. III, da Lei Maria da Penha, não quer dizer que esta lei estará sendo empregada no caso concreto. Mais, o aproveitamento do art. 7° da mesma lei, para caracterizar casos de “violência doméstica e familiar “, igualmente não traduz o uso da lei em prol do sujeito masculino. Em nenhum momento pode-se falar que há aplicação efetiva da Lei Maria da Penha a esta vítima homem.
O fato de o intérprete utilizar conceitos e orientações de uma determinada legislação, impulsionada no ordenamento a favor de uma classe, não quer dizer que ele esteja utilizando esta legislação no caso concreto. São destaques, recortes da lei, que são utilizados em um caso concreto a fim de dar solução à problemática, pois estas são demandas que requerem celeridade.
Isso se chama norma de decisão, é o resultado extraído da interpretação do juiz para dar solução ao caso. Como o magistrado não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico, desde que não parta para o ativismo judicial, não há se falar em aplicação da Lei Maria da Penha para homens, simplesmente porque o juiz utilizou recortes da lei para emprestar uma salvaguarda para a vítima deste gênero.
O que não pode ser admitido é que o juiz se abstenha de decidir porque o legislador não legislou ou negue o pleito porque o pedido não se enquadra em nenhum dos casos legais, aí se instalaria o caos, porque da mesma forma que mulheres precisam de proteção, alguns homens também necessitam se acautelar de mulheres que alegam ter sido estupradas ou agredidas quando não foram; de mulheres que atormentam diariamente no trabalho, na escola, no lazer, 24h por dia, dentre outros tantos exemplos. Hipóteses que na grande maioria das vezes a autoridade policial se nega a registrar o boletim de ocorrência porque sequer caracterizam tipos penais, mas que pela leitura do art. 7°, inc. II, da Lei 11.340/06 se enquadrariam perfeitamente em uma violência psicológica.
Se nestes casos a MPU facilmente seria deferida para a vítima do gênero feminino, porque não emprestar o conceito, e só o conceito, para amparar o deferimento de uma medida de não aproximação quando a vítima é homem? Esse fato em nenhuma circunstância caracterizaria aplicação da Lei Maria da Penha.
Nesse contexto, o juiz ou o advogado que faz uma construção normativa baseado nos artigos citados e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, para justificar e motivar a decisão que determina a não aproximação da agressora mulher, está apenas resolvendo um problema que não possui previsão legal.
O intérprete, a depender da posição que ocupa no jogo processual, deverá fazer uma construção empírica envolvendo os motivadores da Lei Maria da Penha, conjuntamente com os da ação cautelar de separação de corpos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, para fundamentar seu pedido ou decisão, e assim proteger uma vítima que nesta condição não tem amparo do Estado.
O que estamos fazendo aqui nada mais é do que, a partir de uma pré-compreensão do conteúdo normativo, neste caso os propósitos mencionados nos regramentos (Lei Maria da Penha, ação cautelar de separação de corpos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos), entendermos o problema e a partir de então alterar a realidade de um hiato normativo, para dar sentido a essa omissão e acautelar, naquele caso concreto, a vítima homem.
Konrad Hesse deu a essa forma de interpretação o nome de interpretação hermenêutico-concretizador, em que o intérprete parte de uma pré-compreensão da norma e faz um círculo hermenêutico entre o fato e a norma. Encaixa o fato a norma e da norma ao fato, e faz esse vai e vem que Konrad chama de círculo interpretativo.
O intérprete se vale das suas pré-compreensões valorativas para obter o sentido da norma em determinado problema. É aqui que eu vejo a solução para esta questão, aplicar mais o sentido do que a Lei Maria da Penha propriamente dita, e usando os motivos da ação cautelar de separação de corpos e da Declaração Universal dos Direitos Humanos para aplicar à ex-companheira agressora, a medida de não aproximação.
Esse trabalho circular de encaixar o fato a essas regras não identifica o emprego da norma A ou B, o que se está fazendo é interpretar as normas para dar solução jurídica ao caso concreto, um meio termo, e ao mesmo tempo não estaremos pisando no solo movediço do ativismo judicial. Existem inúmeras interpretações de dispositivos legais, desde as iluminadas pelos Direitos Humanos, até as meramente legais (MORAIS DA ROSA, 2017, p. 62).
Da mesma forma que o Supremo modula os efeitos de suas decisões sem realizar ativismo, aqui também podemos fazer o mesmo sem recriar nada. Em nenhum momento o juiz dirá na decisão que aplica-se o artigo tal da Lei Maria da Penha; que emprega-se a Lei 11.340/06 ao gênero masculino. Será, por empréstimo, utilizado o conceito de determinados artigos por ‘orientação’, para construir a proteção em casos de agressões de mulheres contra homens.
É como se a Lei 11.340/06 fosse um refletor e a iluminação projetada por este instrumento a proteção almejada pelo legislador. No ponto escuro ficou o homem e o que o magistrado faz ao protege-lo é apenas direcionar o refletor para ilumina-lo, diante da omissão legal. E isso não caracteriza aplicação da Lei Maria da Penha aos homens; ou da ação cautelar quando o homem não está mais no mesmo domicílio; muito menos o Código de Processo Penal a um fato sem crime.
Tanto é assim, que a mulher é protegida pela lei porque é frágil física e psicologicamente, e isso não será uma questão para ser avaliada quando o pedido vier do gênero masculino. Aqui a violência é estritamente psicológica, a mulher sempre age visando infernizar a vida do homem, pois ela sabe que o ex pode “perder a cabeça”.
É exatamente o que ela quer, é o motivo que esse tipo de agressora busca, por isso a impossibilidade de se aplicar a Lei 11.340/06 aos homens. O Estado tem o dever de promover condições que viabilizem e removam toda a sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade (SARLET, 2006, p. 110/111), sob pena de violar o princípio da dignidade da pessoa humana, aqui obviamente reconhecido seja no homem ou na mulher, não há discussão de gênero neste ponto. E neste aspecto, o Estado tem falhado nesta proteção.
Pode parecer chacota, motivo para dar muitas risadas, mas ponha-se no lugar dessa vítima por um minuto e se imagine todos os dias sendo infernizado pela sua ex-esposa, através de ligações telefônicas, mensagens no WhatsApp, messenger, redes sociais, no seu trabalho, ofensas públicas com o seu nome, para seus amigos e clientes, etc. Eu duvido que qualquer um dos leitores, do sexo masculino e nesta situação, já não teria agredido a ex-consorte. Por isso, a prudência é questão de ordem e o magistrado deve ter muito cuidado ao analisar um pedido do gênero.
Todos sabem que nenhuma vítima homem vai ficar contente porque pleiteou uma medida protetiva – em sentido genérico, ao juízo. Eles não irão contar com satisfação para todos os amigos, não irão relatar para desconhecidos na primeira oportunidade que se revelarem. É um fato que causa vergonha no homem, ele é execrado pelo machismo, principalmente porque a vitimizadora é uma mulher.
Logo, ao aportar no juízo um pedido como este, é porque realmente algo grave está acontecendo, e por mais que os fatos relatados em um primeiro momento não demonstrem tanto risco, é judicioso conceder o pedido, porque são por fatos desse gênero que muitas mulheres são mortas no nosso país.
O que muitas vezes para o interlocutor julgador é um motivo banal, que não justifica o deferimento do pleito, para o ex-casal é uma mágoa silenciosa que provavelmente está associada a outros fatores diminutos que não foram relatados, mas que somados transbordam na mente da vítima um problemão que se resumirá em uma provável violência doméstica.
Sou um dos grandes defensores das mulheres, a maioria dos meus artigos publicados (veja aqui, aqui, aqui e aqui), inclusive meu estudo de conclusão de curso da pós-graduação (Medidas Protetivas na Lei Maria da Penha: enfrentamento de questões que geram polêmicas no campo jurisdicional), se referem ao tema sempre prestigiando a vítima mulher, mas neste caso dou razão aos homens porque não é fácil ser o sexo frágil. Para um mercado machista dominado por mulheres, é tempo de repensar o conceito de tais freios morais.
NOTAS
[1] Julgamento na visão do advogado, ao julgar se o caso tem regramento a favor do cliente. No caso do Juiz se é possível enquadrar a demanda em alguma proteção legislativa. E no caso do Ministério Público se existe possibilidade de atuar em prol dessa classe.
[2] “(…) A conselheira explicou, no entanto, que algumas das medidas protetivas existentes na Lei Maria da Penha (como a que impede que o agressor se aproxime da vítima a menos de 200 metros) têm servido de inspiração aos juízes das varas comuns no exercício de suas funções, inclusive àqueles que analisam casos de violência contra homens, muito embora não se possa aplicar a Lei Maria da Penha nesse caso, conforme já sedimentado na jurisprudência”. {Disponível aqui}
REFERÊNCIAS
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos jogos e processo penal. Florianópolis: Emporio Modara, 2017.
SARLET, Info Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
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