Lei nº 13.245/16 e o caráter inquisitivo do inquérito policial
Por Eujecio Coutrim Lima Filho
Em linhas gerais, no sistema inquisitório o sujeito que decide também determina a produção de provas de ofício (acúmulo de funções). No sistema acusatório, por sua vez, a gestão das provas não é do julgador que permanece como espectador. Logo, de acordo com essa conceituação, o inquérito policial continua inquisitório, cabendo ao Delegado de Polícia o comando do procedimento, praticando atos de investigação e decisórios, ressalvada a reserva de jurisdição. Contudo, essa fase administrativa, de investigação preliminar, que também está sob a égide dos mandamentos constitucionais, não se confunde com o sistema inquisitivo típico da justiça eclesial medieval (GAVIORNO, 2006).
Em consonância com o atual modelo constitucional, a regra é que as provas produzidas no inquérito policial, sem assistência de defesa técnica, sirvam apenas como arcabouço da inicial acusatório, ressalvadas as provas irrepetíveis. Destarte, vislumbra-se a importância da participação da defesa como ponto legitimador democrático do inquérito policial. Em sua essência, o inquérito é uma importante fase pré-processual de natureza inquisitiva, mas já blindado em limites garantistas constitucinais (NUCCI, 2014).
Nem na fase processual, onde o sistema inquisitivo deveria estar ultrapassado, a doutrina é pacífica em falar de um sistema acusatório puro. Com base nos princípios constitucionais vigentes afirma-se que o sistema processual brasileiro é o acusatório. Entretanto, existe um nítido paradoxo entre as regras processuais penais marcadas por traços inquisitivos que permeou o Código de 1941 e as regras processuais constitucionais pós 1988 com fortes traços garantistas. Portanto, não se pode dizer que a divisão entre o sistema acusatório e o inquisitório é estanque, fala-se em um processo misto onde ora prevalecerá o sistema inquisitório ora o sistema acusatório, o qual se intensifica no curso da fase processual. Assim, citando Geraldo Prado (2005), Nucci (2014) afirma que uma análise da jurisprudência predominante permite concluir que vige, no Brasil, a teoria da aparência acusatória.
O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 traz forte raiz inquisitorial, devendo ser iluminado pelos direitos fundamentais consagrados no texto constitucional de 1988. Dentre outros direitos fundamentais, o contraditório e a ampla defesa, como desdobramentos do devido processo legal, são constitucionalmente garantidos tanto no processo judicial quanto no administrativo (art. 5º, LV, CRFB). Assim, como procedimento administrativo capaz de restringir bens essenciais da pessoa humana como o patrimônio e a liberdade, o inquérito policial deve ser reinterpretado sob a atual ótica constitucional (vale lembrar: pós 1941). Deste modo, apesar do pouco avanço legislativo, tem-se a garantia da participação da defesa como um progresso nessa busca de um inquérito policial condizente com o Estado Democrático de Direito.
Antônio Scarence Fernandes (2002) defende que, por não ter que seguir uma sequência predeterminada de atos, o inquérito policial não se enquadra no conceito de procedimento administrativo. Não obstante, este entendimento parece incongruente à realidade diária do Delegado de Polícia que deve cumprir extensa série de atos investigatórios, a serem fundamentados, documentados e colacionados no inquérito policial, objetivando a elucidação da autoria e materialidade criminosa. Assiste razão a Rogério Lauria Tucci (2016) quando afirma que o inquérito policial é uma das modalidades de procedimento administrativo e assim deve ser resplandecido pelos valores constitucionais, é um “procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal”.
No processo inquisitório apenas um sujeito, encarregado de buscar a verdade e decidir, se destaca de forma atuante. No processo acusatório a descoberta da verdade é incumbência de todos os sujeitos envolvidos (juiz, acusador e acusado). Portanto, as matrizes inquisitória e acusatória se diferenciam principalmente em relação aos sujeitos processuais (GAVIORNO, 2006). A garantia da presença do advogado fortalece a defesa e o contraditório, mas não tem o condão de enquadrar o inquérito policial no sistema acusatório.
Assim, apesar de não se fechar precisamente em um conceito doutrinário a partir de características limitativas, pode-se falar que a iniciativa de produção de provas inerente à função investigatória marca o inquérito policial como inquisitório, o que não se confunde com arbitrário. O Delegado de Polícia preside um procedimento essencialmente discricionário, mas possui o dever de fundamentar juridicamente seu entendimento. Nesta linha, a participação da defesa, apesar de não retirar a condução probatória da Autoridade Policial, corrobora o caráter democrático e constitucional da investigação.
Portanto, a alteração legislativa provocada pela Lei n. 13.245/2016 não conferiu caráter acusatório ao inquérito policial (ver aqui, aqui e aqui). A ausência de poder requisitório do advogado na fase investigatória intensifica a continuidade da característica inquisitorial do inquérito policial. Também não se pode ignorar que a eficácia da Polícia Judiciária em grande parte está ligada ao fator surpresa. Assim, se o encontro de fontes de prova estivesse condicionado a anterior participação da defesa, o sucesso da investigação restaria substancialmente comprometido. Entretanto, ainda que de forma atenuada, os princípios do contraditório e da ampla defesa devem ser aplicados ao inquérito policial. O bom senso recomenda que se encontre um meio termo de forma a otimizar, o máximo possível, as garantias constitucionais. A presença do advogado na fase inquisitorial configura uma garantia de credibilidade do procedimento policial (CASTRO; COSTA, 2016).
É possível trabalhar em uma investigação preliminar que seja marcada pela produção de ofício de elementos probatórios de autoria e materialidade delitiva e, ao mesmo tempo, dentro do possível à finalidade e eficácia investigativa, garanta direitos fundamentais constitucionalmente positivados. O magistério de Luís Roberto Barroso (2016) tem o condão de ilustrar essa análise ao afirmar que “no constitucionalismo contemporâneo, o conflito de normas constitucionais é inevitável, uma vez que os textos modernos são dialéticos e tutelam bens jurídicos contrapostos, os quais devem ser solucionados por meio da ponderação em uma atividade criativa do intérprete”.
A Lei n. 13.245/16, apesar de não trazer grandes novidades em relação a direitos já consagrados constitucionalmente, tem o mérito de realçar o respeito ao outro na relação jurídica (o investigado), garantindo a participação da defesa dentro de um procedimento capaz de afastar direitos fundamentais do indivíduo como a intimidade, patrimônio e liberdade. Com base na dignidade da pessoa humana, que fundamenta nosso sistema constitucional, o investigado não pode ser enquadrado como mero objeto de manipulação do Estado, deve ser visto como sujeito de direitos tanto na fase investigativa quanto na fase processual (CHOUKR, citado por SANNINI NETO, 2016).
Ao justificar a natureza essencialmente inquisitiva do inquérito policial, NUCCI (2014) destaca tratar-se de um procedimento sem oportunidade de ampla defesa, sem participação do suspeito na produção e indicação de provas, com recursos, alegações e outros desdobramentos peculiares à fase processual. Entretanto, verifica-se a tendência cada vez maior no sentido de contornar a investigação preliminar de garantias constitucionais fortalecendo o caráter democrático da investigação, bem como sua inegável força jurídica na elucidação de fatos criminosos, proporcionando ao Estado-acusação o desenvolvimento de seu mister. Nessa direção cita-se como exemplo a Lei n. 13.245/2016 que alterou o art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da OAB) e acrescentou o inciso XXI e os parágrafos 10, 11 e 12 ao mesmo dispositivo legal.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. THEMIS – Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará. Fortaleza, v. 4, n. 2, p. 13-100, julho/dezembro de 2006.
CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro. COSTA, Adriano Sousa. Lei 13.245/16 e a participação do advogado no inquérito policial. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.
FERNANDES, Antônio Scarence. Processo Penal Constitucional. 3. ed. São Paulo: RT, 2002.
GAVIORNO, Gracimere Vieira Soeiro de Castro. Garantias constitucionais do indiciado no inquérito policial: controvérsias históricas e contemporâneas. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direitos e Garantias Constitucionais) – Faculdades Integradas de Vitória, Vitória, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
SANNINI NETO, Francisco. Lei 13.245/2016: contraditório e ampla defesa na investigação criminal?. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.
TUCCI, Rogério Lauria. Devido Processo Penal e alguns dos seus mais importantes corolários. Disponível aqui. Acesso em: 27 de março de 2016.