Aspectos penais indiretos da Lei de Responsabilidade Fiscal
Aspectos penais indiretos da Lei de Responsabilidade Fiscal
As formas de gestão na administração pública vêm, nos últimos anos, ganhando relevância na seara penal com a edição de leis que impactam diretamente a seara administrativa, mas também a esfera penal, refletindo, sobremaneira, em uma “nova” visão de gestão pública.
Nesse sentido vale lembrar o leitor que uma das mais importantes leis que tocam neste aspecto é a Lei Complementar nº 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF.
Referida normativa federal estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências, destacando, em seu texto, aspectos que transbordam à esfera administrativa, vez que, com o advento da Lei 10.028/2000, o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) fora alterado, incluindo-se, no tipo penal de denunciação caluniosa, a conduta de “dar causa à instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”, imputando pena de reclusão de 2 a 8 anos, além da multa.
Assim, antes da referida Lei, o artigo 339 do Código Penal estava assim redigido:
Art. 339. Dar causa a instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.
Com a redação dada pela Lei nº 10.028, de 2000, o tipo passou a ser assim descrito:
Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente. (grifamos)
Não houve alteração da pena, nem no aspecto qualitativo, nem no aspecto quantitativo, permanecendo reclusão, de dois a oito anos, e multa.
Além disso, citada Lei incluiu no CP o capítulo IV – Dos Crimes contra as Finanças Públicas, acrescentando 8 tipos penais ao Código Penal, todos ligados à forma de gestão da administração pública, quais sejam, (i) contratação de operação de crédito sem prévia autorização legislativa, com inobservância das normas relativas ao tema ou quando ultrapassado o limite máximo autorizado por lei quanto ao montante da dívida consolidada; (ii) inscrição, em restos a pagar, de despesas não empenhadas ou que exceda limite estabelecido em lei; (iii) assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura cuja despesa não possa ser paga no mesmo exercício financeiro ou que não tenha contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa, caso reste parcela a ser paga no exercício seguinte; (iv) ordenação de despesa não autorizada por lei; (v) prestação de garantia graciosa, ou seja, prestar garantia em operação de crédito sem que tenha sido constituída contragarantia em valor igual ou superior ao valor da garantia prestada, na forma da lei; (vi) não cancelamento de restos a pagar inscrito em valor superior ao permitido em lei; (vii) aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou legislatura (nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato ou da legislatura) e (viii) oferta pública ou colocação de títulos no mercado sem que tenham sido criados por lei ou sem que estejam registrados em sistema centralizado de liquidação e de custódia.
Não obstante cumpra esclarecer que a Lei 10.028/2000 alterou ainda a Lei 1.079/1950 (define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento) e o Decreto-Lei 201/1967 (dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores), que ao lado da LC 101/2000 formam o tripé basilar do sistema de responsabilização do gestor público, vamos nos ater, neste momento, apenas às alterações promovidas no Código Penal, a fim de iniciar a reflexão acerca dos aspectos penais que a LRF pode causar.
Contextualizada a reflexão proposta, analisemos um julgado que trata de demanda afeta ao tipo da denunciação caluniosa após o advento da Lei 10.028/2000, a fim de que possamos compreender a visão jurisprudencial sobre o tema. Vejamos:
AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA PARA INÍCIO DA AÇÃO PENAL. DENÚNCIA QUE IMPUTA AO PREFEITO DO MUNICÍPIO DE CAMPO MAGRO A PRÁTICA DO CRIME DE DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA CONTRA PROMOTOR DE JUSTIÇA. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA. INOCORRÊNCIA. PERFEITA COMPREENSÃO DOS FATOS E DA SUBSUNÇÃO AO TIPO PENAL. DESCRIÇÃO DA INTENÇÃO DO AGENTE, BEM COMO DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE DIFICULDADES QUE COMPROMETAM O EXERCÍCIO DA DEFESA. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE INOCORRÊNCIA DE ANÁLISE EXAUSTIVA NO MOMENTO. SINDICÂNCIA. ESPÉCIE DE PROCEDIMENTO COMPREENDIDO NO GÊNERO "INVESTIGAÇÃO ADMINISTRATIVA". LEI Nº 10.028/2000. DOLO INTEGRA O TIPO. CONHECIMENTO DA INOCÊNCIA. QUESTÕES CUJA ANÁLISE REQUER DILAÇÃO PROBATÓRIA. CONFIGURAÇÃO DE FATO TÍPICO E ANTIJURÍDICO APTO, AO MENOS EM TESE AO OFERECIMENTO DE ACUSAÇÃO FORMAL. PRESENÇA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO PENAL. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA SEM AFASTAMENTO DO CARGO. 1. Não é inepta a denúncia que permite a exata compreensão da amplitude da acusação, pois, desse modo, o réu tem perfeitamente assegurado o correspondente exercício do direito de defesa. 2. A instauração de investigação no âmbito administrativo (gênero do qual a sindicância é espécie) é bastante para possibilitar a tipificação do delito de denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), se presentes os demais elementos do tipo. 3. Apenas posteriormente ao recebimento da denúncia é que deverá ser analisado se o réu agiu com dolo e se ele tinha conhecimento acerca da inocência da vítima, pois antes disso revela-se temerário avançar o entendimento quanto aos temas, sob pena de emitir-se um pré- julgamento sobre a existência do crime. 4. A presença das condições da ação, aliada à tipicidade, antijuridicidade e à culpabilidade, ao menos em tese, permitem o início da ação penal com lastro em acusação plausível. (TJ-PR 5793704 PR 579370-4 (Acórdão), Relator: Roberto Portugal Bacellar, Data de Julgamento: 16/02/2012, 2ª Câmara Criminal) (grifamos)
Nessa leitura do Tribunal de Justiça do Paraná podemos observar que, presentes os demais elementos do tipo, a mera instauração de investigação no âmbito administrativo (gênero do qual a sindicância é espécie) é bastante para possibilitar a tipificação do delito de denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal).
Nesse cenário nos indagamos se o advento de tal tipo penal, com tal interpretação jurisprudencial, não viria a inibir práticas fiscalizatórias da gestão pública em todos os aspectos, já que todo aquele (cidadão, servidor público, membro do Ministério Público, membro de Tribunal de Contas, membro de Conselho Municipal etc) que encaminhar para investigação ou providências administrativas uma prática (ação/omissão) aparentemente ilegal, de administrador público, ensejando a instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, estará sujeito, pela mera instauração do procedimento, a responder por crime de denunciação caluniosa, nos termos do artigo 339, do CP…
Doutra feita, se pinçarmos dentre os tipos previstos no capítulo IV, do Código Penal, que trata, como dito, dos crimes contra as finanças públicas, o crime de assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura, cuja despesa não possa ser paga no mesmo exercício financeiro ou que não tenha contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa, caso reste parcela a ser paga no exercício seguinte, apenado com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e analisarmos sua interpretação jurisprudencial, veremos que os tribunais tem entendido que “não há falar em crime (…) se não há prova segura que o recorrido tinha o dolo da conduta”, ou seja, “a dúvida sobre a ocorrência do dolo, elemento subjetivo do tipo, é dúvida sobre a própria existência do delito, que deve ser resolvida em favor do réu” (respectivamente, TJ-RS – ACR: 70031838766 RS, Relator: Constantino Lisbôa de Azevedo, Data de Julgamento: 19/01/2012, Quarta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 09/02/2012 e TJ-RS – ACR: 70031838766 RS, Relator: Constantino Lisbôa de Azevedo, Data de Julgamento: 19/01/2012, Quarta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 09/02/2012).
Segundo a doutrina de Celso Delmanto, este crime não tem modalidade culposa e o dolo exigido seria “a vontade livre e consciente de praticar as condutas, ou seja, ter o agente conhecimento de que a despesa não poderá ser paga no mesmo exercício financeiro, ou, caso reste parcela a ser paga no ano seguinte, de que não há disponibilidade de caixa suficiente”.
Aquele que atua na administração pública sabe das dificuldades de se cumprir os limites legalmente estabelecidos pela LRF, especialmente aquele que toca na despesa total com pessoal, sendo extremamente difícil, para o gestor público harmonizar a necessidade de atendimento da demanda de serviços públicos ao contingente orçamentário e aos limites de gastos impostos pela lei de responsabilidade fiscal, ficando, por vezes, entre “a cruz e a espada”, pois, se não atender a demanda de serviços públicos essenciais, poderá ser responsabilizado pela omissão verificada e, por outro lado, se optar por dispender orçamento público acima dos limites legalmente impostos, visando atender aos serviços essenciais, fatalmente responderá por sua conduta, inclusive na esfera penal, nos termos do Código Penal, alterado pela Lei 10.028/2000.
Por outro lado, verificamos, na mídia, diuturnamente, inúmeros casos de indivíduos que ocupam cargos e funções públicas, em especial mandatos eletivos, e que estão envolvidos em investigações e processos judiciais por desvio de verbas públicas, sem contudo de fato serem tais investigações e processos conduzidos com o objetivo álveo dos tipos penais elencados no capítulo IV do Código Penal, qual seja, proteger o bem jurídico “finanças públicas”, responsabilizando e apenando aqueles que o violarem, mas também, restituindo-se, como consequência do procedimento, as finanças públicas ao status quo ante da ação criminosa, de modo que o bem jurídico seja restaurado, em especial com a imposição, ao condenado, com trânsito em julgado, da devolução aos cofres públicos dos valores indevidamente apropriados e seu afastamento pelo tempo legal das funções e/ou cargo público do qual se utilizou para perpetrar a conduta criminosa.
Frente a isso tudo, entendemos que somente com um olhar de valorização e proteção do bem jurídico, as alterações legislativas trazidas, já desde 2000, pela LRF poderão, de fato, impactar, beneficamente, a gestão pública administrativa; se assim não for, será apenas mais uma lei que se prestará apenas ao movimento incriminador que apazigua a fúria da opinião pública, sem eficácia prática e sem efeitos positivos sobre a proteção da sociedade, através da proteção da coisa pública.
REFERÊNCIAS
DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO, Fábio. Código Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Renovar 2002.