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Letalidade policial: alguns pontos de partida para sua compreensão

Por Fauzi Hassan Choukr

Recente levantamento publicado pela grande mídia apontou, com base nos dados das secretarias da Segurança Pública, “que ao menos 2.526 pessoas morreram em 2014 somente em ações de policiais militares em serviço em 22 estados do país. Isso significa sete mortos por dia, em media”.[1] Números chocantes para uma realidade complexa que vitimiza, igualmente, servidores públicos encarregados da tarefa de policiamento, não pode esse cenário abrir mão de uma minima análise a partir da ótica do operador do Direito.

Nesse viés é forçoso pontuar que a estrutura policial brasileira, que historicamente apresenta profunda complexidade organizativa e funcional, não comportaria uma apresentação satisfatória se fosse tomada desde a autonomia administrativa pátria em relação ao país colonizador (Portugal), ou mesmo se fosse apreendida ao longo do conturbado século XX em nosso país, período no qual convivemos com fartos mecanismos de exceção ao Estado de Direito antes da Segunda Guerra Mundial[2] para, logo na seqüência (a partir de 1964), iniciar-se um novo período de quebra dos cânones democráticos, terminando formalmente com a promulgação da Constituição hoje em vigor, e que data de 05 de outubro de 1988.

Em face dessa limitação, exalta-se como característica perene do século anterior a vinculação funcional dos aparatos policiais ao Poder Executivo e a instrumentalização, por parte desse Poder, daquelas forças. Isto pode ser exemplificado pela forma de dominação empregada durante o mais recente regime militar que, por meio do Serviço Nacional de Informação (SNI), monitorava o fluxo de informações interessantes ao poder e mantinha sob o seu controle direto as forças policiais, as quais  lhes prestavam serviços quer no âmbito federal, quer no estadual.

Assim, o órgão civil responsável pela investigação e repressão era a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SESP), que controlaria o DOPS[3] e os DEOPS[4]. A força política do SNI era enorme, a tal ponto que o chefe do SNI era automaticamente sério candidato à presidência da República. Havia ainda o Departamento da Polícia Federal (DPF), responsável pela censura e repressão, em casos especiais, e o próprio aparato de segurança pública dos estados, cujas polícias militares passaram ao controle direto do governo federal, por meio do Decreto Nº 667, de 2 de julho de 1969, sendo controlada por um general do Exército.[5] Quando não, as estruturas militares e policiais atuavam explicitamente em conjunto na prática da repressão[6].

A superação formal do regime militar alterou muito pouco a essência da organização e funcionamento das estruturas policiais e, ao contrário do que se poderia imaginar na superação de um regime fortemente militarizado e policialesco para um de face democrática, deu-se no seio do texto constitucional guarida a todas as estruturas policiais já existentes, indo-se  além para  acrescentar estruturas policiais de âmbito municipal[7].

Cada uma dessas organizações policiais conta com suas leis orgânicas[8] e são administradas, ainda, por incontáveis atos emanados das respectivas Secretarias de Segurança Pública (no caso das polícias estaduais civis ou militares) e do Ministério da Justiça, por meio do Departamento de Polícia Federal, no caso da Polícia Federal.

De toda esta exposição, cumpre cifrar talvez como seu aspecto negativo mais direto, que não apenas os organogramas foram mantidos em sua grande essência desde o último regime militar e o momento atual mas, sobretudo, os policiais que participaram de todo o contexto  cultural anterior foram mantidos intocáveis em seus postos, sobretudo em decorrência da Lei de Anistia[9], chegando até a assumir anos mais tarde, pelo voto direto, cadeira no Senado Federal[10], com a bandeira política da segurança pública.

É exatamente toda esta estrutura fossilizada pelos parâmetros culturais da violência ao Estado de Direito que detém a missão de selecionar, “na rua” a matéria prima a ser desenvolvida pelo aparato judicial penal. Em outras palavras, a construção de um “estado de ordem” em princípio obediente aos primados do Estado Democrático e de Direito no que tange ao sistema penal tem, nessas instituições policiais, seu grande agente propulsor. Cumpre indagar em que medida estes aparatos de poder estão aptos a cumprir essa missão.

Diante de tal quadro urge enfrentar substancialmente a questão da redefinição dessas estruturas de atuação de poder, evitando-se o emprego de soluções meramente retóricas, caso se deseje efetivamente a construção de um Estado respeitador dos valores fundamentais da pessoa humana.

Reestruturações formais podem apaziguar momentaneamente tormentos mais expressivos e localizados, da mesma forma que a inserção mecânica de roteiros de leitura humanistas nas academias de formação policial podem servir na agenda política, mas não significam a conversão de fundo do sistema e dos Homens que o compõe.

E deve-se lembrar, igualmente, que “Hierarquia e disciplina parecem as palavras-chave desse universo cujas engrenagens se espera ver funcionar de modo azeitado e cujos agentes devem “marchar como um só homem” sob a ordem de seus chefes. Todavia, nada é menos monolítico, mais dividido, atravessado por conflitos de poder internos e rivalidades crônicas, nada é mais difícil de controlar por sua própria hierarquia do que uma polícia. Pois, se a polícia constitui de fato uma administração, essa administração não é como as outras.”[11]

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[1]  Disponível aqui.

[2] Trata-se aqui do denominado “Governo Vargas”, cujo período de domínio vai de 1930 a 1945, sendo o termo de 1937 a 1945, também denominado do “Estado Novo” o mais crítico desta fase. Vargas voltou à Presidência pelo voto direto em 1950, suicidando-se em meio a uma forte crise política em 1954 (24 de agosto).

[3] Departamento de Ordem Polícia e Social

[4] Departamento Estadual de Ordem Política e Social

[5] Choukr, Fauzi Hassan . O papel do Direito Penal na transição dos  estados autoritários para a democracia. Relatório brasileiro (coordenador ). Inédito no Brasil. Projeto de pesquisa do Max Plack Institute – Freiburg im Breisgau – 1999.  O texto extraído foi elaborado por Pontes, Evandro Fernandes de. & Pontes, José Antonio Siqueira de. Na Alemanha o resumo do relatório brasileiro foi publicado em Freiburg im Breisgau, pela Ed. Iuscrim, 2000. (notas do texto original omitidas).

[6] Outro organismo repressivo de importância foi a chamada Operação Bandeirantes — OBAN. Criada no início de 1969, combinava forças policiais com oficiais militares, principalmente sob controle do II Exército – SP e foi financiada principalmente por industriais nacionais e estrangeiros. Atuou em vários estados, mas principalmente em SP e RJ. Choukr, op. cit.

[7] Art. 144 § 8.º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

[8] Por exemplo, quanto à Polícia Federal, seu regulamento advém da  Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990

[9] Lei de Anistia, de nº 6.683, aos 28 dias de Agosto de 1979, posteriormente regulamentada pelo Decreto nº 84.143, de 01º de Novembro de 1979, já no governo do Gal.. João Batista de Oliveira Figueiredo

[10] Vide o caso do Senador Romeu Tuma, então diretor do DEOPS à época do regime militar.

[11] Monet, op cit. pg.16

_Colunistas-Fauzi

Fauzi Hassan Choukr

Promotor de Justiça

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