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A liberdade de expressão em risco

A liberdade de expressão em risco

No ano de 2009, em um julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal julgou incompatível com a Constituição Federal de 1988 a Lei 5.250/1967, conhecida como a Lei de Imprensa. Publicada durante o período militar, a referida Lei já tinha sido objeto de outras ações por trazer em seus artigos a marca dos tempos em que foi editada, como seu artigo 1º, §2º :

Art. 1º É livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer.

§2º O disposto neste artigo não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei, nem na vigência do estado de sítio, quando o Governo poderá exercer a censura sobre os jornais ou periódicos e empresas de radiodifusão e agências noticiosas nas matérias atinentes aos motivos que o determinaram, como também em relação aos executores daquela medida. (grifo nosso).

Outro problema atribuído à Lei de Imprensa era o fato de que ela previa uma punição rigorosa para jornalistas que desagradassem ao Governo: 

Art. 14. Fazer propaganda de guerra, de processos para subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe: 

Pena: de 1 a 4 anos de detenção.

Art. 15. Publicar ou divulgar:

a) segredo de Estado, notícia ou informação relativa à preparação da defesa interna ou externa do País, desde que o sigilo seja justificado como necessário, mediante norma ou recomendação prévia determinando segredo confidência ou reserva;

b) notícia ou informação sigilosa, de interesse da segurança nacional, desde que exista, igualmente, norma ou recomendação prévia determinando segredo, confidência ou reserva.

Pena: De 1 (um) a 4 (quatro) anos de detenção.

Art. 16. Publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados, que provoquem:

I – perturbação da ordem pública ou alarma social;

II – desconfiança no sistema bancário ou abalo de crédito de instituição financeira ou de qualquer empresa, pessoa física ou jurídica;

III – prejuízo ao crédito da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município;

IV – sensível perturbação na cotação das mercadorias e dos títulos imobiliários no mercado financeiro.

Pena: De 1 (um) a 6 (seis) meses de detenção, quando se tratar do autor do escrito ou transmissão incriminada, e multa de 5 (cinco) a 10 (dez) salários-mínimos da região.

Parágrafo único. Nos casos dos incisos I e II, se o crime é culposo:

Pena: Detenção, de 1 (um) a (três) meses, ou multa de 1 (um) a 10 (dez) salários-mínimos da região.

Art. 17. Ofender a moral pública e os bons costumes:

Pena: Detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa de 1 (um) a 20 (vinte) salários-mínimos da região.

O artigo 17 da referida lei, “ofender a moral pública e os bons costumes”, hoje soa absurdo por confundir de maneira proposital Direito e Moral, abrindo um vácuo legal em que absolutamente qualquer coisa que o Ministério Público e o Judiciário da época quisessem punir, estariam autorizados por esse artigo.

Comuns em todas as épocas da História, os panfletos sem identificação eram proibidos:

§2º Ficará sujeito à apreensão pela autoridade policial todo impresso que, por qualquer meio, circular ou for exibido em público sem estampar o nome do autor e editor, bem como a indicação da oficina onde foi impresso, sede da mesma e data da impressão.

Basicamente, a antiga Lei de Imprensa costurava o Jornalismo da época a agir somente de forma favorável ao Governo, sob pena de rigorosa punição.

Atualmente, no vácuo de uma verdadeira Lei de Imprensa, deve-se observar o disposto na Constituição Federal, no Código Civil, Código Penal, além do Marco Civil da Internet, Lei 12.965/2014, alterada recentemente pela Lei 13.709 de 2018.

Dispõe a Constituição:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Em tempos de crise política, e o Brasil está em inegável crise política, na qual “as instituições não estão funcionando normalmente”, mas do que nunca será necessária uma imprensa corajosa, livre de influência de partidos políticos e oligarquias, uma imprensa verdadeiramente independente.

O Código de Ética dos Jornalistas dispõe acerca dos direitos e deveres do jornalista:

Art. 9° – É dever do jornalista:

– Divulgar todos os fatos que sejam de interesse público;
– Lutar pela liberdade de pensamento e expressão;
– Defender o livre exercício da profissão;
– Valorizar, honrar e dignificar a profissão;
– Opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem;
– Combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercida com o objetivo de controlar a informação;
– Respeitar o direito à privacidade do cidadão;
– Prestigiar as entidades representativas e democráticas da categoria;

 Art. 10 – O jornalista não pode:

– Aceitar oferta de trabalho remunerado em desacordo com o piso salarial da categoria ou com tabela fixada pela sua entidade de classe;
– Submeter-se a diretrizes contrárias à divulgação correta da informação;
– Frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou impedir o livre debate;
– Concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual;
– Exercer cobertura jornalística, pelo órgão em que trabalha, em instituições públicas e privadas onde seja funcionário, assessor ou empregado. Da Responsabilidade Profissional do Jornalista

O artigo 5º da CF traz expressamente, no rol de direitos fundamentais, a liberdade de expressão:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;  

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; 

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Na presente discussão, podemos incluir o cerceamento recente, por ações judiciais, da liberdade de cátedra. Por ordens judiciais absolutamente inconstitucionais, faculdades e professores foram constrangidos em sua liberdade de cátedra, com ações judiciais que previam inclusive pena de prisão.

A liberdade de cátedra consiste em:

Cátedra é expressão que deriva do latim e significa cadeira magistral ou doutrinária e teve a sua inspiração na influência da própria cadeira de São Pedro, a chamada Cathedra, Cathedra Petri ou Cadeira de Pedro, conservada até os dias atuais na Basílica de São Pedro, por ser um símbolo da origem das palavras e conselhos magistrais, de sabedoria, razão que inspirou também ao paralelo com a atividade docente como um direito de defender suas ideias ou professar conhecimento. (TOLEDO, Claúdia Mansani Queda, 2017). (grifos nossos).

A liberdade de cátedra infelizmente não está expressa na Constituição de 1988. Ela é decorrente do direito à educação, previsto constitucionalmente, bem como do rol do artigo 5º, que determina os direitos fundamentais básicos em qualquer democracia, entre eles a liberdade de expressão.

Nesta análise, caberia também questionar o Projeto de Lei “Escola sem Partido”, em discussão na Câmara. Sob a veste de “proibir a ideologia nas escolas”, está em risco, mais uma vez, a liberdade de expressão, consagrada constitucionalmente como Direito Fundamental. Sob a escusa de proibir “doutrinação”, na verdade o projeto institui uma doutrinação, a que os autores da lei creem que deve prevalecer, abrindo inclusive espaço para que professores que desagradem à ideologia dominante sejam punidos com a perda do cargo e processo nas esferas cível e penal.

Tal projeto quer instituir no Brasil, em pleno 2018, uma situação orwelliana, em que crianças serão incentivadas a denunciar professores, o que, aliás, já está acontecendo.

Com crianças daquele tipo, pensou Winston, aquela infeliz mulher deve levar uma vida de terror. Mais um ou dois anos e eles começariam a vigiá-la noite e dia em busca do menor sintoma de inortodoxia. Quase todas as crianças eram horríveis atualmente. O pior de tudo era que, por meio de organizações como a dos Espiões, elas eram transformadas em selvagens incontroláveis de maneira sistemática- (…). Chegava a ser natural que as pessoas com mais de trinta anos temessem os próprios filhos. E com razão, pois era raro que uma semana se passasse sem que o Times trouxesse um parágrafo descrevendo como um pequeno bisbilhoteiro – “herói mirim” era a expressão usada com mais frequência – ouvira às escondidas os pais fazerem algum comentário comprometedor e os denunciara à Polícia das Ideias. (1984, pg. 36).

A liberdade de expressão, baluarte sagrado de qualquer democracia que queira merecer o nome de “Democracia”, está sendo atacada no Brasil em diferentes frentes. Cabe, em tese, aos atores de uma mídia independente e demais setores da sociedade defender o disposto na Constituição Cidadã.


REFERÊNCIAS

ORWELL, George. 1984. Publicado pela 1ª vez em 1949.

TOLEDO, Cláudia Mansani Queda de. Direito à liberdade de cátedra. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Publicado em 2017.

Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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