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Portarias, circulares e instruções normativas: quais os limites para o dever de informação?

O dever de informar-se encontra-se na clivagem dos mais delicados temas de discussão da teoria do direito penal contemporâneo.

Esta forma específica de dever jurídico pode ser invocada como fundamento do dolo, se analisada sob a ótica da omissão imprópria (como, por exemplo, na versão brasileira da aplicação da teoria da cegueira deliberada, como equivalente ao dolo eventual).

Pode também ser utilizada como desdobramento do dever geral de cautela, dando ensejo à responsabilização penal na modalidade de imprudência. Ainda é possível calcar no dever de informar-se a análise de imputação objetiva, uma vez que a falta de cumprimento deste dever seja interpretada como elevação do risco de lesão ao bem jurídico.

Por fim, sem estar certo de ter vislumbrado todas as possibilidades, o dever de informação funciona como critério afirmativo de culpabilidade, tomado como conhecimento potencial do ilícito.

Diante desta vastidão de possibilidades, fica clara a necessidade de oferecimento de limites dogmáticos ao dever de informar-se que condicionem este aos princípios penais, aos mandamentos constitucionais e a um sistema penal minimamente conforme a feição do Estado Democrático de Direito.

Partindo dessa observação, seguem dois exemplos em que o dever de informação, se utilizado como fundamento de alguma das condições concretas de punibilidade, trará a sanção penal para muito perto da responsabilização objetiva, incompatível com nosso ordenamento constitucional democrático.

Primeira situação hipotética: gerente de um banco oferece ao seu cliente a possibilidade de abertura de uma conta de investimentos no exterior. O investimento inicial sugerido é de US$ 80.000,00.

O cliente autoriza a remessa, que é realizada em conformidade com as leis incidentes sobre a operação. Passado algum tempo, o cliente efetua negócios lucrativos no exterior, elevando o valor original para cerca de US$ 108.000,00 ao final do exercício fiscal (trinta e um de dezembro).

No ano subsequente, o cliente lança o valor mencionado em sua declaração de imposto de renda. Algum tempo depois, sofre denúncia por incurso no art. 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86, que estipula o delito de “manter depósitos não declarados à repartição federal competente”.

O cliente contata o seu gerente, que alega não saber que o valor na conta de investimentos tinha ultrapassado os US$ 100.000,00, uma vez que a conta no exterior é gerenciada por operadores que lá atuam.

Ocorre que a Resolução 3854 (BACEN), combinada com a Resolução 3624, estabeleceu o dever de entregar anualmente a declaração de Capitais Brasileiros no Exterior ao BACEN quando os ativos ultrapassem US$ 100.000,00, determinando ainda que esta declaração deverá ser entregue até o dia 5 de abril do ano subsequente ao que foi apurada a superação do limite.

O cliente alega que informou à Receita Federal os depósitos mediante entrega da declaração do imposto de renda. Porém, seu advogado lhe explica que, com a edição da Medida Provisória 2.224, de 2001, ficou estipulado que as informações deveriam ser enviadas ao BACEN e não mais à RFB.

Questiona-se: o cliente possuía o dever de informar-se sobre a necessidade e os detalhes de como a declaração deveria ser enviada? O gerente atua como garante nesta situação, possuindo o dever de acompanhar a evolução dos investimentos no exterior de clientes para os quais tenha sugerido a operação?

Caso o banco, em meio a tantos informativos que passa aos seus clientes por e-mail, tivesse enviado um destes com informações sobre a necessidade de entrega da declaração, isso faria com o que o dever do gerente pudesse ser considerado superado?

Cabe a alegação de erro de proibição no caso do cliente, mesmo sendo pessoa com formação universitária e acostumada ao “mundo dos negócios”? No caso do gerente, poderia alegar o erro em alguma circunstância? Em caso afirmativo, seria erro de tipo caso incidisse sobre a condição de garante ou sobre o valor em depósito?

Segunda situação hipotética: diretor de uma associação civil voltada a atividade de ensino, sem fins lucrativos, questiona seu contador sobre a necessidade de recolhimento da COFINS sobre as mensalidades recebidas.

O parecer indica não haver a necessidade de recolhimento, com base no seguinte entendimento: o art. 14 da MP 2158-35, de 2001, cominado com o art. 13 da mesma e com o art. 15 da Lei 9532/97 considera isenta da COFINS as “associações civis sem fins lucrativos que prestem os serviços para os quais tiverem sido instituídas e os coloquem à disposição do grupo de pessoas a que se destinam”.

Com base nesse parecer, deixa a associação de efetuar o recolhimento.

Ocorre que a Instrução Normativa 247/2002, emanada pela Receita Federal, em seu art. 47, § 2º, estabelece que a isenção só alcança contribuição de mensalidades que não tenham “caráter contraprestacional direto”, o que vai de encontro com a natureza dos valores recebidos pela entidade, uma vez que pagos justamente em virtude da prestação de serviços de educação recebidos.

Sendo assim, a RFB instaura processo administrativo, no qual apura o não recolhimento e efetua o lançamento definitivo do tributo.

Não possuindo os valores necessários para o recolhimento apurado, a associação queda silente. Algum tempo depois, o diretor presidente recebe intimação relacionada à denúncia por crime contra a ordem tributária (art. 1º, I da Lei 8137/90) considerando falsa a informação de que os valores recebidos pela associação possuem natureza compatível com a legislação que prevê a isenção, conforme acima exposto.

Imaginando, hipoteticamente, que o magistrado ou o tribunal desconhecessem o posicionamento do STJ, é razoável imaginar a possibilidade de condenação. O STJ, porém, decidiu no Resp/RS 2012/0233737-7 que o parágrafo 2º da IN 247/2002 ofende o inciso X do art. 14 da MP 2158-35/01, pacificando o entendimento que as “atividades próprias” de entidades sem fins lucrativos de educação geram naturalmente suas receitas em caráter contraprestacional, sendo “flagrante a ilicitude do art. 47 § 2º” ao excluir esta possibilidade da isenção.

Ainda assim, a IN continua em vigor. Caso o posicionamento do STJ não fosse levado em conta, diversas questões atinentes ao tema deste texto poderiam ser levantadas: o diretor possui o dever de conhecer a IN?

O contador atua com garante, possuindo o dever de conhecer as IN que limitam a possibilidade de isenção em casos tais como o enunciado? É possível a invocação do erro neste caso?

Havendo dúvida (caso, por exemplo, a manifestação não fosse do STJ, mas apenas de alguns tribunais regionais), tal dúvida gera o dever de obtenção de mais informação, informação mais qualificada ou impõem o dever se abster-se da conduta?

Os dois casos levantados não se baseiam em litígios específicos. A pesquisa neste sentido ainda está para ser realizada. Porém, fica perceptível o extenso rol de normas que possuem o potencial de gerar deveres com influência decisiva na imputação da sanção penal.

Assim, destaca-se mais uma vez a necessidade de criação de limites dogmáticos razoáveis. Quer seja no tratamento do erro, quer na própria construção do tipo em relação à omissão imprópria, esta parece ser uma tarefa urgente a ser levada a cabo.

Para não terminar o texto apenas apontando problemas, alista-se a tentativa de oferecer uma possível saída imediata: uma vez que nas searas mencionadas o nível de dúvida cabível é significativo, cabe ao Estado o ônus de comprovar, na situação concreta sob judice, a possibilidade de construção do fundamento de punibilidade que está sendo tratado (como nas hipóteses tratadas no início) apoiado no dever de informação.

Significa dizer que ao MP acarretará a necessidade, ao oferecer a denúncia, de demonstrar que a informação não apenas era alcançável com esforço razoável pelo agente, como comprovar que a informação a ser obtida possuía sentido suficientemente unívoco, sem entendimentos jurisprudenciais confusos ou normativas contraditórias ou ambíguas. Só assim, será legítima a alegação de que o dever de informação não foi cumprido, ensejando uma das possibilidades de atribuição de responsabilidade que aqui foram tratadas.


REFERÊNCIAS

GALVÃO, Robson. O erro no direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016

LEITE, Alaor. Domínio do fato ou domínio da posição?: autoria e participação no direito penal brasileiro. Curitiba: Centro de Estudos Professor Dotti, 2016.

____________. Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal. São Paulo: Atlas, 2013

SILVA, Fernanda Miquelussi. A Sociedade de Risco e os Crimes Omissivos no Brasil. Ponto Vital Editora, 2015.

TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.

_______________. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Instituto Latino-Americano de Cooperação Penal, 1996.

_______________. Teoria do Crime Culposo. 4ª ed. Empório do Direito, 2016.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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