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Linguagem criminal: um golpe universal

Linguagem criminal: um golpe universal

Nós lutamos todos contra todos. Existe sempre algo em nós que luta contra outra coisa em nós. Michel Foucault

A linguagem criminal é um golpe (do) universal, forjado ante o princípio da autoridade e seu enquadramento da realidade; transforma e remodela artificialmente multiplicidades e complexidades, então esmagadas pelo senso comum dos condutores de consciências, sabidamente abrangente do senso comum teórico dos juristas sublinhado por Luís Alberto Warat (1982).

São então encaixotadas em unidades de coesão fabricada, lidas e interpretadas enquanto verdades: todo o chamado “sequestro do conflito” característico do poder punitivo e demais sequestros a isso vinculados, se baseiam em presunções fantasiosas que reduzem multiplicidades e diferenças a farelos retoricamente reorganizados em fluxos retilíneos.

As doutrinas jurídico-penais auxiliadoras desse cenário são também doutrinas construtoras e refletoras de sínteses que visam manter essas multiplicidades e complexidades controladas, utilizando os pressupostos desses achatamentos como pontos de partida incontornáveis, inquestionáveis, insubstituíveis (o que aponto entre as supostas “imprescindibilidades” vendidas).

Em seus percursos, Louk Hulsman notou como esse fluxo pré-estabelecido da linguagem criminal, que fatalmente desagua na prisão como centralidade, não é exatamente insubstituível, nem sequer na imaginação das pessoas e em suas realidades; uma sociedade sem penas já existe, e mesmo no limite de casos violentos, nem todas as “vítimas” desejam necessariamente o encarceramento do outro, e nem outra medida de sofrimento imposta.

Isso se mostrará ainda mais evidente na imensidão de situações-problema do cotidiano codificáveis como delitos, mas que não o serão, pela brutal distância das resoluções concretas, singularidades e especificidades das situações, e a artificialidade da linguagem criminal, rígida e totalizante.

Também pude comprovar isso diante de situações complicadas ou mesmo estudos de casos concretos em Brasil e Argentina; e qualquer um que se permita dissolver as simulações da linguagem criminal, logo captará que nenhum de seus pressupostos, mesmo os com maior aparência lógica, nutrem o sentido insubstituível que se gabam de ter.

Isso inclui desnudar mesmo os discursos garantistas legitimantes que apostam no Direito Penal como uma contenção do poder punitivo; e mesmo os que, a exemplo da criminologia zaffaroniana, expõem tais redes como uma péssima ideia de contenção, mas deixando escapar, negligenciando (por questionável adequação a uma escolha tática e retórica que sabe ser equivocada), os profundos efeitos de não se tratar nem sequer de uma má contenção: simplesmente não é uma contenção, e nem uma tentativa de contenção.

É preciso reconhecer a condição de poder, inclusive encarcerador, do suposto contra-poder penal, que simula uma contenção jurídica do poder punitivo; como se não integrasse a mesmíssima coisa, materialização da diagramação do poder punitivo num encaixe que envolve o Direito Penal enquanto uma badalada técnica jurídica desembainhada por atores, e muitos deles bem entusiasmados, em manusear as categorias, fluxos, premissas, promessas retóricas da linguagem criminal, no embalo desse sequestro do conflito, simulando uma unidade moldada em um projeto de vontade geral, ilusória, hipotética, mas de efeitos extremamente reais na produção de redes de violências que seguem se expandindo no século XXI.

Como se todos desejassem naturalmente a incidência do princípio da autoridade e da punição associados à “resposta” criminal, que avoca para si uma presumida vontade totalizante fabricada verticalmente de modo a torcer e ignorar, no limite atropelar, as vontades destoantes, esfarela-las; é dizer, destroçar as multiplicidades e diferenças na uniformização e homogeneização dos artificiais produtos associados à linguagem criminal; esmagamentos que só são possíveis mediante significativa violência real e simbólica.

A filosofia da diferença e das multiplicidades bem se relaciona com as histórias dos pensamentos libertários, e contribui para acessos e percepções, imaginações, que não se curvem aos confiscos, sequestros e capturas atreladas ao poder punitivo, de outras linguagens possíveis que não as dos fluxos pré-estabelecidos fabricados (crime, pena, prisão), enfrentando as ficções fantasmagóricas que se apresentam como unidades, enquanto sacrificam as multiplicidades e diferenças.

Esse encontro ativador de complexidades propicia encontros e reinvenções entre o abolicionismo penal (focando em abolições mais amplas, logo abolicionismos), anarquismos, e filósofos como Michel Foucault e Gilles Deleuze. Esses fantasmas, de ficções retóricas e uniformizações que absorvem e apagam o indivíduo, os únicos, o singular, são lanceados por filósofos como Max Stirner e Nietzsche, que, como Foucault e Deleuze, cada qual ao seu modo, enfrentam essa absorção, reafirmando a vida, a diferença, o que destoa [1], contra a captura universal, e as pretensões dos especialistas e entusiastas da arte de governar e de inverter controles, com sonhos (militarizados) de recriar sujeições e aberrações que restauram as autoridades, permutando sinais, posições e situações, mas mantendo os dejetos que precisam ser abolidos, a exemplo das prisões.

Os legitimantes da linguagem criminal e outros golpes do universal, ainda quando não se percebem nessa condição, reiteradamente replicam e se encantam com sistematizações alternativas de outras opções fundadas nos mesmos vícios, em ossadas podres com pequenas reformas, como uma limitada “reaproximação da vítima”, enquanto se preserva e não se enfrentam os efeitos dos processos de subjetivação ancorados em centralidades e fantasmas de pretensão universal, uma metafísica das autoridades, que abarca abstrações como “a sociedade”, “a justiça”, “a moral”, “o direito”, sempre invadindo as discussões e permutando a concretude por palavras carregadas a serviço da linguagem criminal, cheia de sagrados e absolutos, muitíssimo funcionais à acusação, e dificílimos de serem contestados pela defesa, pois não há como apagar o devastador peso desses e outros fantasmas que se converteram nos pacotes que colonizam nossos pensamentos com uma falsa aparência de concretude.

Isso soa abstrato, na medida em que há uma inversão brutal em nossas linguagens sedimentadas, de modo que artificialidades da linguagem criminal e jargões estúpidos como “pela defesa da sociedade”, “contra a criminalidade” etc., são interpretados como coisas concretas, e coisas concretas são captadas como coisas abstratas, pelos que inverteram tudo, acessando não o singular, o instante, a si próprios, mas fantasmas como “a sociedade” e artificialidades retóricas funcionais à linguagem criminal, entre tautologias e fluxos pré-prontos, de “respostas” pré-prontas, isto é, compartimentos que obedecem a logicidade real de seus artífices (e não a declarada e/ou prometida) em nome de fantasmas que abarcariam a todos os “cidadãos”, mas em prol do mundo das autoridades.

Muitas vezes, o leitor se irrita ao não ler mais do mesmo, e por isso perceber que não entendeu. Prefere ler mais do mesmo e se vangloriar de ter entendido, ainda que isso não o modifique substancialmente em nada acerca de abolições necessárias e possíveis.

Quando estamos sendo guiados por luzes ludibriosas (e vale lembrar como Bakunin critica essas luzes trêmulas que nos capturam), precisamos, antes, nos liberar dos falsos guias, refúgios e fortalezas; não é incomum nessa situação nos deparamos com o território desconhecido do abandono das velhas capturas, e isso não é algo ruim, mas uma abertura de possibilidades, uma fenda que se abre com novas combinações de acessos e reinvenções.

É preciso se esforçar para pouco a pouco entender as coisas, e gradativamente produzir, conseguir inventar uma luz própria destoante dos simulacros antigos [2].

Certamente seria mais fácil se os alimentos fornecidos fossem mais do mesmo, porque não obrigariam a pensar fora do pré-concebido, mas essas leituras, que frequentemente jogam com a “compreensão” do público, são as mesmas responsáveis por sua brutal desinformação.

A linguagem criminal, a depender das condições, pode se voltar contra poderosos, “VIPs” (exemplos não faltam na recente história do Brasil), mas jamais contra o princípio da autoridade, nele fincando suas garras e estabelecendo sua morada, produzindo discurso nesses lindes funcionais às hierarquias e ao poder (para cada cabeça – ainda que autoritária – assim cortada, outras se fortalecem e desfrutam da “oportunidade”).

Embora o “crime” não exista (o que existem são as mais distintas concretudes codificadas nas artificialidades da linguagem-crime), existem os que naturalizaram e repetem essa linguagem universal estéril, deformados com sua cristalização e simplificação totalizante (replicando-a mesmo para, como acreditam – acreditam? –, se opor a ela).

Uma linguagem oca, porém extremamente carregada e costurada por poderosas simbologias, deturpações e achatamentos na imaginação, entre um universo de erros lógicos e presunções gerais, universo de achatamentos e simplificações: a linguagem criminal é a linguagem das simplificações, inserindo no mesmo ciclo de fluxos pré-estabelecidos uma infinidade de coisas demasiado distintas entre si (é preciso ser insano para, exemplificativamente, acreditar que um sistema que reaciona a partir dos mesmos fluxos retilíneos da linguagem-crime, contra coisas tão distintas como um estupro, uma injúria e um furto de bicicleta, adotando as mesmas premissas, faça sentido universalmente, correspondendo a uma boa ideia, na qual a prisão como política é central engendrando redes de violências, e isso sem nem entrar nas especificidades e singularidades de cada situação e seus envolvidos, e também sem nem entrar no quão horrendas são todas as consequências disso tudo, é dizer, desses fluxos de sequestros).

A linguagem criminal remete a um universo de capturas e sequestros, um horizonte de simplificações. Remete à pretensão universal de codificar e absorver a vida em caixinhas encarceradoras, controlar e simplificar, restringir toda complexidade, reduzida, ridicularizada, refém das interpretações dos atores do sistema de justiça criminal e do mundo das autoridades.

Esses atores, a exemplo dos juízes criminais, manuseiam categorias pesadas e carregadas da linguagem criminal, revestidas com essa infinidade de erros e tautologias, simbologias ligadas a sagrados e absolutos, reunidas ante o princípio da autoridade e da punição: forjam e replicam linguagens nas quais muitas vezes acreditam, e que simulam a condição de si próprias como insubstituíveis, produções incontornáveis e imprescindíveis da realidade.

Foucault apontou a polícia como o golpe de estado permanente; vale apontar aqui a linguagem criminal como o golpe universal. Golpe que destroça a complexidade do singular e de cada situação-problema, comprimidas e permutadas por um mandamento geral atrelado ao fluxo pré-estabelecido mencionado, de “respostas” pré-fabricadas (antes das pergunta corretas); linguagem que bloqueia e anula distintos acessos dos validados pelas autoridades e seus sistemas; linguagem de destruição da capacidade de pensar além do castelo do poder (punitivo), linguagem sacrificial da potência.

A linguagem criminal é o verdadeiro golpe permanente, demarcadora e controladora de geografias com discursos legitimantes que só podem ser reafirmados como uma questão de fé; linguagem cristalizada em inúmeras noções que tristemente se tornaram naturalizadas em níveis alarmantes, como as tristes concepções de “justiça”, “segurança” e “liberdade” hoje vigentes, funcionais aos poderes estabelecidos em detrimento das multiplicidades, devorando e absorvendo pessoas de carne e osso, enquanto se dissolvem e anulam percursos singulares.

É uma inimiga por excelência dos percursos singulares e da multiplicidade de cada único, como os colonizados pelo princípio da autoridade são inimigos da diferença. Preferem energizar religiosamente sistemas autoexpansivos (cada vez piores), que se esforçar para pensar de verdade nos casos concretos, isto é, fora da linguagem criminal.

Sem dispensar essa linguagem podre, suas simbologias e metáforas de amanhãs melancólicos e encarcerados, não há abolição possível: a própria linguagem e imaginação encontram-se aprisionadas pela fé nas luzes trêmulas dos condutores de consciências, historicamente enfrentadas pelos anarco-abolicionistas (ou abolicionistas libertários).

A anarquia e abolicionismos abrangentes da prisão como política caminham juntos, eis que sem a abolição do princípio da autoridade, a abolição das prisões decerto seria substituída por controles ainda mais sofisticados (já pensados) que redimensionariam mais uma vez a miséria da servidão universal.

Lamentavelmente a maioria dos criminólogos contemporâneos deixa escapar o conteúdo crítico que poderiam extrair das histórias dos pensamentos libertários, se fechando nas próprias armadilhas nas quais há séculos caem e reproduzem, agora, nas sociedades de controle, ainda mais fascinados pela palavra participação; corda direcionada para a manutenção (e no máximo restauração) dessa linguagem, e assim aos poucos nos enforcamos, acreditando em empoderamento.

Certa repetição das criminologias com a etiqueta “crítica” infelizmente não vem acompanhada das, cada vez mais urgentes, críticas libertárias às criminologias (muito pouco é considerado acerca dos anarquistas). Onde falta reinvenção, sobra replicação e adoração, fé na representação. Faltam indivíduos singulares enquanto sobram soldados e subjetividades policiais obedientes aos fluxos repressivos. Borbulham progressismos de parcela dos atores do sistema de justiça criminal, enquanto os pensamentos verdadeiramente destoantes morrem de fome, quando não são suicidados pelo exército dos normais e seus candidatos igualmente normais: personificações da crença no princípio da autoridade como o normal.

“Normalidade” mata e governa; a linguagem criminal é a linguagem dos normais que invocam como escudo e espada as palavras forjadas pelo princípio da autoridade e da punição (CORDEIRO; PIRES, 2017): linguagem da razão de governo; linguagem da servidão universal, a linguagem dos candidatos de esquerda e de direita que ambicionam escalar a pirâmide em prol “dos seus”.

Linguagem que ridiculariza a horizontalidade.

Linguagem do golpe permanente.

Do golpe universal da linguagem criminal.


NOTAS:

[1] Como escrevi no texto “Educação Proibida e Linhas de Fuga Abolicionistas” In: “Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos” (2018): “Não existem caminhos únicos, mas sim os caminhos dos únicos, e suas fantásticas associações e reverberações, valorizando a horizontalidade, atiçados pela liberdade e apoio mútuo. Navegar sem ser tragado, absorvido, abocanhado e devorado no universal: sem ser esfarelado e obliterado.” (PIRES, 2018, p. 116).

[2] Particularmente, prefiro que meus livros e ensaios sirvam positivamente e toquem profundamente 100, 50, 20 ou mesmo algumas pessoas, do que verificar que ela achata e deforma ainda mais milhões de pessoas zumbificadas, o papel atual dos best-sellers, celebridades, estrelas repressivas e falsas resistências das vanguardas nas “ciências criminais”, fiéis à razão de governo, ao princípio da autoridade e da punição, soldados de tudo isso, soldados do universal.


REFERÊNCIAS

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Política, Sociedade e Castigos: Ensaios libertários contra o princípio da autoridade e da punição. Florianópolis: Editora Habitus, 2017.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

WARAT, Luís Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência, Santa Catarina, v.3, n.5, 1982.

Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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