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A tênue linha que separa Direito e Vingança

A tênue linha que separa Direito e Vingança

A mitologia grega, um das mais ricas do mundo antigo, segue sendo como fonte de estudos no mundo moderno. Em sua época, esse conjunto fantástico de mitos influenciou os primeiros estudos de filosofia, foi a inspiração para a criação da mitologia romana (fazendo surgir a vertente mitologia greco-romana) e inspirou vários escritores. Uma dessas narrativas, escrita por Ésquilo, narra o julgamento de Orestes pela deusa Pala Atena e pelo Tribunal de Areópago.

A Oresteia é composta de três partes: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. A compreensão da narrativa requer a leitura atenta das três peças. A parte final, do julgamento de Orestes, é a peça fundamental que interessa ao estudo do Direito Penal. Orestes assassina a própria mãe a fim de vingar a morte do pai.

A família do jovem Orestes vinha de uma longa linhagem de incesto, estupro, tragédias e assassinatos. A vingança do crime de uns leva ao crime de outros, e resulta na tragédia do matricida, que se vê obrigado pelo dever de filho a assassinar a própria mãe.

Pois Clitemnestra, mãe de Orestes, havia assassinado o marido Agamêmnon, pai do jovem, para vingar outra morte, o assassinato da filha Ifigênia. Agamêmnon sacrificou a filha Ifigênia a mando da deusa Ártemis. Esse ciclo de mortes e vingança termina em Orestes e seu julgamento.

No julgamento presidido por Pala Atena, as Erínias pedem a condenação à morte do assassino. Orestes insiste que apenas vingou a morte do pai, parte de seu dever de filho. Nos debates, o deus Apolo também defende que Orestes cumpriu com seu dever.

Encerrados os debates, os jurados irão depositar seus votos na urna. Antes da abertura da urna, Palas Atenas declara que seu voto é a favor de Orestes. Portanto, o voto da deusa é pela absolvição do acusado. Dessa narrativa, vem a consagrada expressão “voto de Minerva”. Minerva é como a mitologia romana renomeou a deusa grega Pala Atena, a deusa da sabedoria.

Por fim, a sentença é declarada: no empate de votos, prevalece a absolvição do acusado.

Além de ser uma das primeiras representações literárias do Tribunal do Júri, a peça de Ésquilo é leitura fundamental para os operadores do Direito Penal. A peça simboliza a substituição da Vingança pelo Direito, pela Razão.

O Direito Penal deve ser mais do que a simples punição a crimes: a função primordial do Direito é a busca da pacificação social. Do contrário, corre o risco de voltar a ser mero instrumento de vingança.

O Judiciário e o Ministério Público devem ser atores conscientes de seu dever para com o Estado Democrático de Direito e para com a paz social. A esses atores, devemos acrescentar a mídia, que muitas vezes cumpre um papel fundamental na questão da criminalidade, para o bem e para o mal.

A grave questão da criminalidade não deve ser diversão para o público, alimentando o que o escritor Nathaniel Hawthorne chamou, em seu célebre livro “A letra escarlate”, de “sadismo popular”.

Acima de tudo, os atores do Direito Penal devem ser imparciais:

(Ferrajoli) Assinala que o direito penal nasce precisamente no momento em que a relação bilateral parte ofendida/ofensor é substituída por uma relação trilateral em que uma autoridade judicial se situa numa posição de terceiro ou imparcial.” (Curso de Direito Penal, Paulo Queiroz, pg. 430).

A imparcialidade como dever do Juiz está prevista no Código de Ética da Magistratura Nacional, instituído em 2008:

Art. 8°. O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

Dados do CNJ mostram que há atualmente 602 mil presos no país. Desse total:

O balanço parcial do BNMP 2.0 já indica qual tipo de crime mais leva pessoas à prisão no Brasil. O roubo representa 27% dos crimes cometidos pela população carcerária. O tráfico de drogas corresponde a 24% do total de tipos penais atribuídos aos presos brasileiros. O terceiro artigo do Código Penal que mais motivou prisões – o homicídio – vem atrás, com 11%. Em comparação, a Lei Maria da Penha representa 0,96% dos crimes que levaram pessoas à prisão.

A punição pela punição, nas masmorras medievais que constituem o que o STF declarou em “estado de coisas inconstitucional” na ADPF 347/2015, constitui um Direito Penal meramente retributivo, no qual a pena tem a função de castigo.

Considerando que relatório da Anistia Internacional de 2015 divulgou que 85% dos homicídios no Brasil não são solucionados, deve-se questionar se o Direito Penal está focando sua proteção nos bens jurídicos mais importantes.

Com o sistema prisional em colapso, urge repensar a forma que o Direito Penal e seus atores tem trabalhado para oferecer proteção aos bens jurídicos relevantes, pois o punitivismo puro e  simples não oferece segurança à sociedade como um todo.


REFERÊNCIAS

CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA NACIONAL, 2008.

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal, vol. 01: Introdução e Princípios Fundamentais/Luiz Flávio Gomes; Antônio García-Pablos de Molina; Alice Bianchini. São Paulo – Editora Revista dos Tribunais, 2007.

HAWTHORNE, Nathaniel. A letra Escarlate.

KARAM, Henriete. A Oresteia e a Origem do Tribunal do Júri. Publicado em: Revista Jurídica, vol. 04, nº 45, Curitiba, 2016. Pg. 77-94.

MONDIN, Battista. Curso de Filosofia, vol. 1. São Paulo- Editora Paulus, 1981.

QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal, vol. 1. Editora JusPODIVM, 2013.

Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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