Literatura marginal: trocando uma ideia com as Ciências Criminais
Literatura marginal: trocando uma ideia com as Ciências Criminais
A mão que escorre sangue pode escrever romance?! (Facção Central)
Afinal, o que é literatura marginal? É um gênero literário? Pois bem, ninguém melhor para responder essa pergunta do que o Ferréz (escritor da literatura marginal, talvez o mais conhecido deste campo). Ele afirma que vai além de um gênero literário, que alguém pode escrever um livro de romance; de poesia, de contos e se enquadra na literatura marginal, sabe a razão?
A razão é que para ser considerado literatura marginal o fator X é o lugar de origem do autor(a). Portanto, uma pessoa que mora em um lugar marginalizado e publica um livro, pela própria natureza de ser, essa obra será literatura marginal. E o contrário também é válido. Como assim? Alguém de fora dos lugares marginalizados jamais poderá ser enquadrado na literatura marginal.
Será que um prisioneiro comum, sem recursos financeiros e influência política, teria chances de encontrar durante o seu julgamento, a deusa chamada de Justiça pelos romanos? Será que um favelado teria chances de encontrar, num plenário do judiciário racista da Guerra Não Declarada do Brasil, a deusa, que na mitologia romana representava a justiça? Será que num tribunal brasileiro, os princípios da mulher, que era invocada por sua imparcialidade pelos que sentiam injustiçados pelos poderosos, são realmente respeitados? Será que os homens e mulheres vestidos de toga, a exemplo da personagem, que em seus julgamentos vendava os próprios olhos para não enxergar raça, religião e conduta social de um réu, só focam as suas decisões nos fatores a serem julgados? (TADDEO, 2016, p. 619).
O sistema processual brasileiro é uma máquina de moer pobre, como diria Aury Lopes Jr. Se nós verificarmos os dados do INFOPEN, poderemos ver o perfil do encarcerado, no qual se resume: jovem entre 18 e 24 anos de idade; negro e com baixa escolaridade. E com esse mesmo dado nós olharmos a população dos bairros marginalizados, veremos que o perfil é o mesmo do encarcerado. Aqui se apresenta a seletividade do sistema penal, que pode se dividir em duas categorias: a criminalização primária e a criminalização secundária.
Criminalização primária é o ato e efeito de sancionar uma lei penal material que incrimine ou permita a punição de certas e pessoas (…) Em geral, são as agências políticas (parlamentar, executivo) que exercem a criminalização primária, ao passo que o programa por elas estabelecido deve ser realizado pelas agências de criminalização secundária (policiais, promotores, advogados, juízes, agentes penitenciários). (ZAFFARONI, 2003. p. 43)
Pode-se perceber aqui o processo de criminalização atuando, melhor dizendo o processo de criminalização que já atuou e escolheu seus “clientes”. No poema “Os miseráveis”, do poeta Sérgio Vaz, que também é dá literatura marginal, podemos perceber a separação da criminalização no que diz respeito aos crimes de pessoas sem poder político e econômico e àqueles considerados crimes do colarinho branco:
Vítor virou ladrão, Hugo salafrário.
Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário.
Um usava capuz, o outro, gravata.
Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata.
Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio.
Um não tinha amigo: parceiro.
O outro, tinha sócio.
Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia, enquanto Hugo fazia pose pra revista. O da pólvora apodrece penitente, o da caneta enriquece impunemente.
A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente. (VAZ, 2013, p. 57).
Quem tem poder político e econômico tem quase sempre imunidade contra o sistema penal, essa situação também é narrada nas obras de literatura marginal.
Na literatura marginal as histórias e narrativas são um campo bem rico para análise das ciências criminais, a partir de uma perspectiva de quem tem escreveu, no qual vive ou viveu os dramas do sistema penal e seus mecanismos de controle social.
Ocorre que o poder punitivo não se realiza somente através do sistema penal. Na verdade, para se punir alguém é suficiente utilização de força, seja ela física ou armada. A imposição da pena pode ocorrer, portanto. à margem do sistema legal, como no caso de pena de morte, pena ilícita que no âmbito dos países periféricos ganha contorno de genocídio. Também à margem da legalidade, o sistema penal apresenta um poder configurador positivo, que restringe direitos e garantias individuais sob o “manto” do poder de polícia. (ZACCONE, Orlando. Acionista do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2015, 128).
Diversas obras da literatura marginal são baseadas em relatos e denúncias do abuso do poder de polícia; sobre prisões arbitrarias, mortes e tortura.
Bolonha, isso vai f*der todo mundo, Bolonha. Os caras tão mudando a lei, até o Alckimin veio falar, a Civil vai estar no nosso rabo. O DHPP, Bolonha, o DHPP vai investigar todo caso de morte em troca de tiro, sabe o que é isso, Bolonha?
Os lugares marginalizados são um campo fértil para histórias trágicas e alimentam o estudo das ciências criminais, além de se debruçarem para tentar algumas respostas que a sociedade vem questionar, por exemplo, o motivo do delito; como surge o criminoso; como evitar um delito entre outras perguntas. Nesse mesmo campo minado também nascem a literatura marginal, tão rica e poderosa como as pessoas que vive e sobrevive nesses lugares.
REFERÊNCIAS
FERRÉZ. Os ricos também morrem. São Paulo: Planeta, 2015, p.22-23.
TADDEO, Carlos Eduardo. A guerra não declarada na visão de um favelado vol. II. São Paulo: s/editora, 2016, P p. 619.
VAZ, Sérgio. Colecionador de pedras. São Paulo: Global, 2013, p. 57.
ZACCONE, Orlando. Acionista do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015, 128.
ZAFFARONI, E. Raúl. BASTISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
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