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Lendo Lolita no Brasil: A mulher e a lei

Lendo Lolita no Brasil: A mulher e a lei

A iraniana Azar Nafisi lançou o sensacional livro “Lendo Lolita em Teerã” em 2003. A obra traz entrelaçadas as lembranças da escritora dos tempos sombrios que se seguiram à Revolução Islâmica no Irã, em 1979, a trechos de seus ensinamentos de literatura.

A então professora universitária e demais mulheres iranianas de repente se viram em um mundo sombrio, onde a liberdade feminina era cerceada nos melhores detalhes.

Numa mistura sombria de “1984” com o “O conto da aia”, as mulheres iranianas caíram numa situação de opressão quase inimaginável para quem, até então, desfrutava de uma liberdade similar a das mulheres ocidentais: podiam frequentar a universidade, ter postos de trabalho, o uso do véu era facultativo às mulheres que assim desejassem por questões religiosas. As mulheres não muçulmanas não eram obrigadas ao uso do véu.

Após a Revolução, o primeiro sinal de que tempos sombrios viriam se materializa com a questão do véu. A mulher que não utilizasse as vestimentas adequadas, ou seja, coberta literalmente dos pés à cabeça, era presa.

Para entrar e sair da universidade, Nafisi e suas alunas eram revistadas, por guardas truculentos e abusivos, que se aproveitavam da situação para assediar as jovens. Nos numerosos protestos contra o governo que se seguiram, muitas ativistas eram presas.

A prisão era o maior terror dessas jovens, com abusos físicos e sexuais cometidos pelos oficiais. Nafisi escreve como a prisão mudou o comportamento de uma de suas jovens alunas e como a mesma nunca verbalizou a ninguém sobre o período em que ficou presa:

Nasrrin tinha um ar praticamente desinteressado. A indiferença tinha se transformado em uma forma de defesa contra as memórias desagradáveis e a realidade que não podemos controlar. (pg. 261).

Os maiores inimigos do novo regime eram o objeto de estudo da professora Nafisi: os livros.

Todo grande livro que líamos se tornou um desafio para a ideologia dominante. Os livros se tornaram uma ameaça potencial e um perigo, não tanto por causa do que diziam, mas da maneira como diziam, a posição que defendiam em relação à vida e à ficção. Em nenhum outro autor esse desafio foi mais evidente do que em Jane Austen. (pg. 346-7).

Em outra passagem, a escritora conta que uma de suas alunas favoritas recebeu uma advertência da direção da Universidade por… correr:

O Sr. Nahvi exercia uma grande influência na nossa universidade, e certa vez denunciou Nassrin ao comitê disciplinar. Seus olhos de águia detectaram-na correndo escadas acima, num dia em que estava atrasada para a aula. No começo, Nassrin se recusou a assinar uma retratação, em que declarasse prometer jamais correr novamente nas dependências da universidade, mesmo se estivesse atrasada para a aula. Enfim concordou, (…) sua resistência obstinada não valia a expulsão da universidade. (pg. 348).

Cada vez mais insatisfeita com o novo regime, vigiada constantemente em suas aulas e em sua casa, temendo, enfim, por sua vida e sua família, só resta a Nafisi e boa parte de suas alunas a emigração, legal ou ilegal.

No oriente, a questão feminina continua quase igual ao tempo narrado por Nafisi em sua obra. No ocidente, terra da “liberdade”, onde a cidadã frequenta a universidade, ocupa postos de trabalho, tem permissão para dirigir, utiliza-se da vestimenta escolhida por si mesma, a questão feminina continua complexa.

Essa pretensa liberdade da mulher ocidental por muito tempo mascarou a violência de que a mesma é vítima. Casos de feminicídio e assédio sexual tem ocupado as manchetes jornalísticas. Não é que, de repente, a mulher começou a figurar como vítima de violência; esses casos eram subnotificados e mesmo ignorados tanto pela legislação como pela mídia.

Na data de 07 de agosto de 2006 foi enfim promulgada a Lei 11.340/2006, chamada com justiça de “Lei Maria da Penha” em homenagem à ativista Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica que enfrentou a ineficácia da lei quando tentou, por anos a fio, que o ex-marido fosse criminalmente responsabilizado por inúmeras agressões físicas, psicológicas e duas tentativas de assassinato. Por fim, o agressor foi condenado a dez anos de prisão pelas tentativas de homicídio.

Em 2015, a Lei 13.104 veio incluir no art. 121 do Código Penal:

Art. 121. Matar alguém: (…)

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Corrigindo uma omissão da Lei Maria da Penha, a Lei 13.104/2015 veio tratar como homicídio qualificado o homicídio doloso de mulher pela simples questão de ser mulher. A particularidade do crime de feminicídio consiste no fato de que a violência doméstica antecede quase sempre o homicídio ou tentativa de homicídio. A violência é gradual; começa com pequenas agressões até a tragédia do assassinato.

Igualmente, foi notícia a aprovação no Senado do PLS 618/2015, de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PcdoB-AM), que incorporou trechos de outros projetos e agora vai para sanção (ou veto) presidencial. O projeto:

Prevê como causa de aumento de pena o estupro cometido por duas ou mais pessoas;

Prevê o crime de importunação sexual: a prática de ato libidinoso contra alguém sem a sua anuência; esse novo tipo penal quer abarcar principalmente as questões de atos libidinosos em transporte/local público, pois a legislação atualmente existente deixa um vácuo nessa questão;

Prevê o crime de vingança pornográfica: a divulgação de imagens de sexo, nudez e cenas de violência sexual, tipos que no exterior ganharam o título de revenge porn.

O projeto é bem vindo diante da ocorrência de novas situações, que a legislação já existente não previu e, portanto, não havia como penalizar tais condutas. Pois:

não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Vejamos o que diz a Lei de Contravenções Penais sobre “molestar alguém:

Art. 65. Molestar alguem ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:

Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

A conduta descrita na LCP é muito genérica, além da punição irrisória, sendo insuficiente para tratar a questão do assédio em ambientes públicos.

O crime de assédio sexual previsto no Código Penal, além de não prever situações como o assédio em locais públicos, deixa a problemática de que o agente criminoso deve ter cargo superior à vítima, deixando de lado situações em que o agente está no mesmo nível hierárquico da mesma, ou mesmo em nível inferior, pois a questão do assédio é comportamental, tendo pouco a ver com o cargo ocupado pelo criminoso.

O agente não assedia a colega de trabalho apenas porque é chefe e existe a relação de subordinação e dependência; assedia porque a sociedade permite e tolera esse comportamento. O pavor da vítima não vem do cargo ocupado pelo agente criminoso, e sim pela agressividade de sua conduta:

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.               

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. 

Portanto, espera-se que a legislação penal cumpra com sua função de prever e punir condutas lesivas a bens jurídicos selecionados, mas também é de se esperar uma mudança de comportamento da sociedade como um todo, pois a questão feminina, tanto no oriente como no ocidente, é complexa e triste.

No ocidente, as burcas são metafóricas, mas nem por isso menos opressoras.

Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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