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Lula Ministro é um escárnio?


Por Marcelo Crespo


A crise política está muito semelhante a uma novela em reta final: a cada capítulo uma surpresa. O dinamismo dos acontecimentos, a seletividade midiática e os atropelos constantes à Constituição e às leis têm dificultado sobremaneira que sejam feitos prognósticos sobre os fatos. Isso sem falar nos atécnicos, apaixonados e, portanto, ridículos, debates presentes nas redes sociais.

Vamos nos ater apenas ao fatos do último mês, já que há acontecimentos  bombásticos quase que diariamente.

Precisamente no dia três de março a imprensa (ISTOÉ) tornou público trechos do que seria a delação premiada do Senador Delcídio do Amaral, no qual teria atribuído diversas condutas ilícitas a muitas autoridades públicas de diversos partidos políticos. O então suposto teor foi tratado como uma verdadeira bomba nuclear capaz de por abaixo a República, mas ainda não se tinha a confirmação de que a delação havia mesmo sido feita e se teria sido homologada.[1]

No dia seguinte, quatro de março, o ex-Presidente foi alvo da vigésima quarta fase da Operação Lava Jato tendo sido conduzido coercitivamente para prestar depoimento na Polícia Federal sobre, basicamente, três situações: a) reformas/benfeitorias no apartamento tríplex no Edifício Solaris no Guarujá; b) ocultação de propriedade, em especial o sítio em Atibaia/SP; c) vultosos pagamentos feitos ao Instituto Lula (e à LILS Palestras) por construtoras investigadas no esquema de corrupção na Petrobrás.

Não há muito o que dizer sobre a investigação recair sobre o ex-Presidente, afinal, há muitas informações nebulosas sobre os fatos, de forma que não se pode, isoladamente, criticar a existência de uma apuração policial. A questão é que os fatos investigados têm servido como verdadeiro combustível para alimentar egos e interesses diversos pouco claros. Assim, a condução coercitiva foi, evidentemente, um exagero, um despropósito que apenas serviu como alimento midiático e inflamatório em um país cuja estabilidade política e econômica agoniza. Sobre este abuso, muitas opiniões foram registradas e diversos artigos escritos, sendo que somente aqui no Canal Ciências Criminais foram três, os quais sugiro a leitura:

a) O que é, afinal, condução coercitiva? – 04.03.16;

b) Condução coercitiva: uma visão crítica – 08.03.16; e

c) Mandado de condução coercitiva e a Constituição da República – 11.03.16.

No dia nove de março o Ministério Público do Estado de São Paulo formalizou denúncia contra o ex-Presidente Lula, sua esposa, filho e outras quinze pessoas da BANCOOP (cooperativa habitacional dos bancários) e da OAS (empreiteira).

Embora muitos entusiastas do processo penal midiático tenham se deliciado com a acusação, a denúncia foi severamente criticada por muitos professores, advogados, defensores públicos e até mesmo outros promotores de justiça. Dentre as críticas verificam-se as relativas à sua extensão (tem cento e setenta e nove páginas), pouca objetividade, inépcia por deixar de relacionar os fatos às pessoas nela mencionadas e por conter confusa menção a Hegel no lugar de Engels (não ficando claro se foi um grande equívoco redacional ou coisa pior).

A denúncia acompanhou pedido de prisão preventiva com elucubração esdrúxula de que o ex-Presidente poderia fugir do país, além de deixar transparecer nítido caráter midiático ao se pleitear que em caso de deferimento do pedido de prisão, que os mandados fossem entregues em mãos de um dos promotores  subscritores da denúncia para cumprimento. O motivo declarado para tal pedido foi o de se evitar a violação dos direitos fundamentais dos acusados. O motivo não declarado seria político partidário ou apenas de egocentrismo/exibicionismo? Não sabemos.

Domingo, dia treze de março, a maior manifestação após as “Diretas Já” levou milhões às ruas, com muitos pleitos sobre o fim da corrupção, contra o Partido dos Trabalhadores e a favor do impeachment da Presidente Dilma. Vide notícias aqui e aqui. Evidentemente as manifestações contaram com bizarrices sem tamanho, tais como a presença de Geraldo Alckmin e Aécio Neves, que não conseguiram capitalizar simpatia e foram vaiados como oportunistas, além de outras presenças oportunistas como o trio Bolsonaro/Malafaia/Feliciano, sem nos esquecermos, ainda, dos sempre cretinos e absurdos pedidos de intervenção militar.

Na segunda-feira, dia catorze de março tornar-se pública a decisão da juíza para a qual a denúncia contra Lula havia sido distribuída. A magistrada entendeu que os crimes denunciados são federais, e não estaduais; que já há uma investigação em curso sobre esses crimes na Justiça Federal; que, caso Sérgio Moro entenda que a denúncia é de âmbito estadual, ele pode desmembrar o processo e devolver o que achar pertinente; que o caso deixa de estar em segredo de Justiça em São Paulo.

Em face de todo o exposto, desde a notícia da denúncia contra Lula, mas especialmente desde as manifestações de domingo até hoje ganhou grande repercussão a possibilidade do ex-Presidente Lula se tornar Ministro de Estado no governo da atual Presidente, Dilma. Ao que tudo indica, a possibilidade de Lula participar de alguma formalmente do governo Dilma decorre do contexto acima narrado e, por isso mesmo advieram questionamentos sobre a licitude desta participação porque poderia: a) obstruir a justiça; b) frustrar o eventual mandado de prisão preventiva; c) beneficiá-lo por ter a competência para seu julgamento pelo Supremo Tribunal Federal e não pelo juízo de primeira instância.

Sobre isso vejamos.

A Lei nº 4.717/65 (trata da Ação Popular) determina que é considerado nulo o ato administrativo praticado com desvio de finalidade, isto é, quando o agente pratica o ato visando fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência (art. 2º, parágrafo único).

Mas este texto legal não é suficiente para resolver a questão.

Em primeiro lugar porque a nomeação de Lula é um ato político, havendo divergências sobre a possibilidade do Poder Judiciário exercer controle destes atos. O fato da lei da Ação Popular ser anterior à Constituição faria com que a mesma tivesse que ser interpretada à luz da Carta Magna. Há doutrina entende que, apesar de difícil controle, os atos poderiam, em tese, ser controlados pelo Judiciário, mas nossa Constituição é omissa quanto a isso. Seria um silêncio eloquente autorizador?

Em segundo lugar, presumem-se legais os atos administrativos.

Em terceiro lugar, é bastante difícil a demonstração do desvio de finalidade já que o móvel não é declarado, pretendendo camuflar a impressão de ilegalidade, o que demandaria a comprovação por indícios.

Fato é que os atos políticos não podem ficar totalmente alheios do Poder Judiciário porque todos devem cumprir as normas jurídicas. E, nesta perspectiva seria possível entender o ato como violador da moralidade administrativa (art. 37, CF/88) uma nomeação que atentasse contra ações do Judiciário porquanto compete ao STF julgar “nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado” (art. 102, CF/88). Seria, portanto, um desvio de finalidade porque o ex-Presidente não estaria no governo para servir ao país, mas para se ocultar das investigações.

Mas, ainda que se entenda que o ato é legal, é preciso considerar que o Supremo Tribunal Federal entendeu que em casos de manobras fraudulentas para alterar o juízo natural da causa a competência não é deslocada (STF. Plenário. AP 396/RO, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 28/10/2010).

Ocorre que é certo que uma nomeação de Lula para ocupar um Ministério causará imediatas impugnações, certamente com fundamento na violação do art. 37, CF/88. E em precedente semelhante (“caso Lucena” – ADI nº 1231/DF impugando a lei nº 8.985/95) o STF entendeu que não lhe caberia o controle de ato político.[2]

Além disso tudo, é necessário considerar que a mudança de competência para o STF não constitui uma efetiva obstrução judicial porque, quando muito, retardaria a apreciação quanto à denúncia e ao pedido de prisão preventiva.

Há que se considerar, ainda, que após o esdrúxulo entendimento do Supremo Tribunal Federal no âmbito do habeas corpus nº 126.292 de que as penas devem ser executadas mesmo antes do trânsito em julgado, então a análise por instância única não significa necessariamente um privilégio.

Vê-se, portanto, que tecnicamente a nomeação pode ser defendida ou refutada sob a óptica do controle judicial de atos políticos, apesar de entendermos que a nomeação violaria o princípio da moralidade.

Por fim, deve-se ponderar o que o ex-Presidente poderia, politicamente, fazer em favor do país, já que a política econômica praticada no seu governo não teria acolhida em face do grande endividamento dos governos. Então, também sob esta perspectiva, não se vislumbra o que o ex-Presidente poderia fazer em prol do país, restando dúvidas razoáveis de que sua nomeação como ministro teria finalidades outras. É esperar para ver.

E para você? Lula Ministro é um escárnio?


NOTAS

[1] Uma necessária observação sobre a apuração do vazamento: não se tem notícias de que ele esteja sendo apurado nos termos do art. 17, §§1º e 2º da Resolução nº 217/16 do Conselho Nacional de Justiça. Lamenta-se muito o vazamento seletivo de informações e, mesmo com o CNJ tentando “por ordem no galinheiro”, tudo indica que nada mudará quanto a esta deletéria prática.

[2] O professor Rafael Mafei fez uma postagem no Facebook esclarecendo este caso (veja aqui). Outro bom texto explicativo é o de Marcelo Rodrigues, disponível aqui.

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Marcelo Crespo

Advogado (SP) e Professor

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