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Lutar no Tribunal, até o fim

Lutar no Tribunal, até o fim

Existem elementos probatórios, notadamente testemunhais, que claramente indicam que o recorrente não surpreendeu a vítima. Esta, imbuída de notória intenção desafiadora, ameaçava, xingava, palpitava contra um público que, desconfiado, sugeriu ao recorrente o perigo iminente de qualquer ação criminosa da vítima.

É certo que outros depoimentos são contrários. Nenhum ocular, mas de ouvir dizer que o recorrente não deu chance de defesa para a vítima quando a abordou de morte, até porque a vítima não era ameaçadora, não andava armada, não tinha conduta desabonadora.

A conduta do recorrente, até então considerada crime, foi tipificada, denunciada e a seguir pronunciada como homicídio qualificado. A qualificadora era a do inciso IV, no critério do elemento surpresa.

É de se ressaltar que a mídia contribuiu sobremaneira para a mentalidade da Corte primigênia, que praticamente teve que manter essa tipificação, como uma prestação de contas públicas de sua jurisdição.

O recurso em sentido estrito era medida óbvia e necessária. Seu objetivo era desqualificar o homicídio, para levar a júri um homicídio simples que será entendido, facilmente, como necessário, no discernimento da legítima defesa, desde a resposta consistente, coerente, moderada e proporcional do recorrente a uma prévia, injusta e atual (ou no mínimo iminente) agressão da vítima.

O trâmite regular do recurso encaminhou-o à pauta de julgamento. Dias antes da sessão, memoriais recíprocos (defesa e acusação) distribuídos aos três desembargadores votantes. Em sessão, sustentação oral da defesa seguida do voto do relator. Tudo absolutamente indeferido. Voto pelo integral desprovimento do pleito.

A disparidade entre a fala da tribuna e a leitura do primeiro voto suscitou pedido de vista do segundo votante. Pedido de vista é sempre um alento.

Significa que o desembargador prefere melhor analisar os autos, a causa, e quando a defesa está convicta da tese e os autos gritam pela sua razão, sempre é bom receber análise detida dos votantes.

Na semana seguinte, sessão subsequente, após encaminhamento de necessários memoriais incidentais, o segundo votante traz o voto bem detido na análise dos autos. Contrariamente ao relator, vota pela exclusão da qualificadora. A defesa nutria sincera esperança nisso, e até estranhava o voto inaugural.

Em meia dúzia de testemunhos diretos a abordagem prévia do recorrente à vítima era evidente e comprovada, e retirava definitivamente o elemento surpresa que vinculava uma injusta qualificadora.

O acirrado debate entre os dois votantes praticamente impõe ao terceiro e último votante, numa medida de frenagem dos ânimos, outro pedido de vista. Mais um pedido de vista, quando o julgamento está “um a um”. Mais um alento à defesa. Mais memoriais incidentais, com ultimíssimos argumentos.

Na sessão subsequente o terceiro julgador acompanha o voto divergente do segundo julgador e, por maioria de votos, vencido o relator, a qualificadora é retirada. Nova tipificação: homicídio simples.

As consequências são elementares.

Em primeiro lugar, a necessária revogação da prisão preventiva, que já perdura um ano e agora, nessa temporalidade, acaba de completar um sexto da pena mínima do homicídio simples.

Afinal, seria esse o cumprimento de pena em regime fechado diante de uma eventual condenação, em júri. Não faz sentido, portanto, manter a preventiva. Há aqui um inequívoco excesso de prazo.

Em segundo lugar, quanto à análise estratégica da pena e do regime de cumprimento, se e quando de uma condenação. No homicídio qualificado, a pena mínima é de 12 anos, e o regime é o fechado.

Além disso, para réu primário, o cumprimento da pena nesse regime mais gravoso, dada a peculiaridade de ser hediondo, é de 2/5; ou seja, o condenado cumpriria 4 anos e 8 meses em penitenciária. Descontando o ano de preventiva, restaria 3 anos e 8 meses, no mínimo, em penitenciária.

Já no homicídio simples, sem ser hediondo, tem-se como pena mínima 6 anos, em regime semiaberto, com progressão de regime mediante cumprimento de 1/6 da pena.

Considerando o ano de prisão preventiva, já houve, como dito acima, o cumprimento do sexto da pena mínima em regime até mais gravoso que o semiaberto, o que acarreta à eventual condenação, considerando a primariedade, as circunstâncias e a pena mínima, o regime aberto.

Ou seja: considerando eventual (e remota) condenação em júri, com qualificadora haveria o cumprimento de pena de 3 anos e 8 meses em presídio; sem qualificadora haveria o cumprimento de pena em regime aberto.

Para réu policial essa é, na prática, a diferença entre morrer e viver – a mesma diferença de quando tomou a decisão, em 2 segundos, de reagir à injusta agressão atual da vítima: morrer ou viver.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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