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Maioridade penal x (ir)responsabilidade penal

Por Vilvana Damiani Zanellato

São inúmeros os argumentos dos que defendem a redução da maioridade penal. São inúmeros os argumentos dos que repudiam tal redução.

O tema já foi alvo de exposição nesse espaço e, diante de todo o impasse que gera, pode ser reiteradamente abordado, sem que se repitam as ideias acerca de qual solução jurídico-legal atende aos anseios da sociedade, quanto a esse aspecto.

A polêmica, que, na história do Direito brasileiro, há anos está em voga, robusteceu-se semana passada em razão da notícia de um (entre tantos e tantos) ato bárbaro e extremamente violento que fora perpetrado, ao que tudo indica, por menores infratores, no Estado do Piauí, contra quatro adolescentes do sexo feminino, ocasionando a morte de pelo menos uma das vítimas.

A discussão tomou mais vigor, diante da aprovação, no último dia 17, pela comissão especial criada na Câmara dos Deputados, da proposta de Emenda à Constituição, cujo teor traz a redução de 18 para 16 anos a maioridade penal para jovens que, pasmem, cometam crimes graves.

Todo o debate gira em torno da alegada impunidade àqueles que, sob a proteção constitucional (art. 228), da legislação penal (art. 27) e também do estatuto específico (art. 104) não sofrem punição pelo cometimento de fato criminoso.

Referida assertiva, no entanto, não se sustenta.

Não obstante o menor de 18 anos de idade seja mesmo inimputável, essa condição não lhe retira a responsabilidade penal, a partir dos 12 anos, ainda que em grau mais brando do que a imprimida aos plenamente imputáveis.

Isso porque, embora nosso ordenamento jurídico não admita o “processamento” e a “aplicação de pena” ao menor que, em tese, teria perpetrado fato considerado delituoso, em face dele será instaurado procedimento de apuração de ato infracional, com rito especial, no qual é possível a internação provisória (equivalente à prisão processual do imputável) e a admissão de eventual representação com o estabelecimento, ao final, de medida socioeducativa[1] (equivalente à condenação com aplicação de sanção privativa de liberdade do imputável).

Então, não é séria a chamada que tenta seduzir, de modo apelativo, o leitor com dizeres sobre “impunidade”.

De outro lado, ainda que se considere a redução da maioridade um retrocesso social, não é menos certo que também não é séria a chamada que tenta seduzir, de modo igualmente apelativo, o leitor com dizeres sobre “pobres meninos”.

Nem tanto ao céu nem tanto à “cela” (terra)!!!

ão sejamos ingênuos. Sabemos bem da atual situação carcerária do País. Temos conhecimento, igualmente, da falência das instituições sob as quais os menores infratores são mantidos para fins de internação provisória e de cumprimento de medida socioeducativa. Vale dizer: está tudo errado! Nada funciona…

A constatação serve não para dizer que se é contra ou a favor da redução, mas para lançar postulação no sentido de que o encarceramento, por si só, ao menos nessa conjuntura, não significa que se está solucionando o problema da criminalidade juvenil. Noutro passo, a manutenção desses menores nos estabelecimentos a eles destinados reclama imediata reforma, seja porque não está cumprindo com a função à qual foram incumbidos seja porque o limite legal temporal de internação, v. g., seja muito exíguo para se realizar o devido trabalho socioeducativo, conforme o próprio nome sugere.

E ainda que, aqui, não se revelará juízo de valor quanto à questão, não se pode silenciar no que toca à citada aprovação parcial legislativa. Deixem-me ver se entendi ou se vou pedir para desenhar: um adolescente de 16 anos, que pratica conduta tipificada no art. 155 do Código Penal (furto simples), não pratica crime, pratica ato infracional. Todavia, esse mesmo adolescente, que pratica conduta tipificada no art. 213 do Código Penal, (estupro) pratica crime? Então a gravidade objetiva do delito é que vai definir se o agente é inimputável ou não?

Pode isso, Congresso? Não. Não pode. A regra é clara!

Da mesma forma que determinados crimes, de modo abstrato, meramente apriorístico, não têm o condão de privar o imputável de certos benefícios, como responder ao processo em liberdade, poder progredir de regime prisional etc. também não poderão definir se determinado indivíduo é ou não imputável.

Tese por demais esdrúxula!

Ou bem o menor de 18 e maior de 16 não tem discernimento suficiente quanto ao caráter ilícito do comportamento delituoso e permanece inimputável, ou bem o maior de 16 anos tem discernimento suficiente e é considerado imputável, pouco importando a conduta criminosa que eventualmente venha a recair sobre os seus ombros.

É por essas e outras extravagâncias que, por vezes, o Poder Judiciário é crucificado e apontado como usurpador da competência do Poder Legislativo em legislar. Essa hipótese é exemplo categórico e, certamente, se concretizada restar, não vingará no Supremo Tribunal Federal.

Além disso, na verdade, a alteração pretendida está totalmente na contramão da direção que guia o contexto de direitos humanos interamericano, mundial e do próprio Estatuto da Juventude, editado há menos de 2 anos e que confere direitos aos jovens – adultos – que têm entre 15 a 29 anos de idade.

Ainda que o Congresso esteja repleto de “boas intenções” quanto ao tema em exame, a criação, como se mágica fosse, de leis que resultam em situações jurídicas aberrantes, não pode prevalecer.

Muita calma nessa hora, pois, parafraseando NORONHA[2], a maioridade, mais cedo ou mais tarde, acontecerá.

__________

[1] As medidas socioeducativas são aplicadas com os objetivos de responsabilizar o adolescente pela prática do ato infracional, com incentivo à reparação das consequências lesivas, sempre que possível; buscar a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e desaprovar a conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei (Lei do Sinase, art. 1º, § 2º) (HATHAWAY, G. S. de A. O Brasil no Regime Internacional dos Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens: comparação de parâmetros de justiça juvenil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2015, p. 16).

[2] NORONHA, E. M. Direito Penal: introdução e parte geral. 38ª ed. São Paulo: Rideel, 2009, vol. 1.

_Colunistas-Vilvana

Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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