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Manicômios, prisões e conventos (parte 2, de 3)

Manicômios, prisões e conventos (parte 2, de 3)

  • Leia Manicômios, prisões e conventos (parte 1)

O mundo do internado 

Um primeiro aspecto que merece consideração é o que Goffman chama de “mudança cultural”: o afastamento do internado de um comportamento padrão no mundo externo que compromete, num eventual retorno à sociedade, a sua “ressocialização”. A mudança cultural também é denominada “desculturamento”, ou ainda “destreinamento”.

Tudo começa com os processos de admissão: “obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto a regras, designar um local para o internado. Os processos de admissão talvez pudessem ser denominados ‘arrumação’ ou ‘programação’, pois, ao ser ‘enquadrado’, o novato admite ser conformado e codificado num objeto que pode ser colocado na máquina administrativa do estabelecimento, modelado suavemente pelas operações de rotina.” (pp. 25-26)

Essa verdadeira despedida seguida de um começo, normalmente marcado pela nudez, conduz a um sentimento de “perda de propriedade”, que não necessariamente é física, pois uma das mais significativas perdas é o próprio nome, que será substituído por um número, ou uma alcunha, ou um apelido: verdadeira e primária “mutilação do eu”.

Segue-se ao ritual de iniciação, um conjunto de “indignidades”: indignidades de fala (chamar os dirigentes de “senhor”); respostas verbais humilhantes; pedidos de permissão (para usar telefone, para fumar, para barbear-se, para ir ao banheiro); celas com barras de ferro; perseguição sexual (revista, exame retal: “… penetram a intimidade do indivíduo e violam o território do seu eu.”); sistema de apelidos; correspondência lida e censurada; caráter público de visitas (inexistência de intimidade, não permissão para troca de objetos, guarda vigiando permanentemente a visitação); humilhações (exigências humilhantes, repetições de ordens desnecessárias); mortificação dos sentimentos; castigos (num campo de concentração, p. ex., “… o momento de arrumar as camas era uma fonte especial para as maldades da SS.” O paradoxo entre sapatos mal cuidados e  sapatos muito engraxados: “o que indicava que o prisioneiro tinha descuidado de outras obrigações.”

A essas indignidades se soma outra ritualística de um contexto de pretensa sociabilidade: gíria institucional; linguagem própria; lendas sobre o estabelecimento; gozação coletiva; vaias e gritos; batidas em bandejas, rejeição coletiva do alimento; pequenas sabotagens; rebeliões; formação de liames, de panelinhas; ligações sexuais, formação de pares, amigos os casais – “mutuamente dependentes para grande amplitude de assistência e apoio emocional.”

Há, todavia, uma organização de sistemas de privilégios. Isso conduz a uma espécie de “reorganização pessoal”. O autor classifica três elementos básicos:

  1. [“regras da casa”]. É um conjunto explícito e formal de prescrições e proibições; exigências ao internado; rotina diária.
  2. [prêmios ou privilégios claramente definidos]. Obediência. “Reconquistas” (do que perdeu na sociedade civil) – “restabelecem as relações com todo o mundo perdido e suavizam os sintomas de afastamento com relação a ele e com relação ao eu perdido pelo indivíduo.”
  3. [castigos]. Consequência à desobediência às regras.

Ademais, existem táticas de adaptação, assim elencadas:

  1. [passividade]. Afastamento da situação. “O internado aparentemente deixa de dar atenção a tudo, com a exceção dos acontecimentos que cercam o seu corpo.”
  2. [desafio]. Tática de intransigência. “O internado intencionalmente desafia a instituição ao visivelmente negar-se a cooperar com a equipe dirigente.” Castigo.
  3. [aceitação completa]. “Colonização”. “O pouco do mundo externo que é dado pelo estabelecimento é considerado pelo internado como o todo, e uma existência estável, relativamente satisfatória, é construída com o máximo de satisfações possíveis na instituição.”
  4. [entusiasmo]. “Conversão”. “O internado parece aceitar a interpretação oficial (ou da equipe dirigente) e tenta representar o papel do internado perfeito. (…) o convertido aceita uma tática mais disciplinada, moralista e monocromática, apresentando-se como alguém cujo entusiasmo pela instituição está sempre à disposição da equipe dirigente.” (pp. 59-61)

Consigo visualizar em toda essa conjuntura, embora o autor não tenha fundamentado sua tese nesse marco teórico, a luta por reconhecimento (Hegel). Pois a hierarquização e uma necessária e evidente “baixa posição” dos internados, se comparada a como viviam no mundo externo, cria um mecanismo de “fracasso pessoal” em que a “desgraça pessoal” é o elemento caracterizante de sua [nova] vida social.

“… um intenso sentimento de que o tempo passado no estabelecimento é tempo perdido, destruído ou tirado da vida da pessoa; é tempo que precisa ser ‘apagado’; é algo que precisa ser ‘cumprido’, ‘preenchido’ ou ‘arrastado’ de alguma forma. (…) É neste contexto que podemos avaliar a influência desmoralizadora se uma sentença indefinida ou de sentença muito longa.” (pp. 64-65)


Na próxima semana: Manicômios, prisões e conventos (parte 3, de 3)

Não deixe de ler: Manicômios, prisões e conventos (parte 1)

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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