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A (in)existência de maus-tratos no comércio de animais domésticos

A (in)existência de maus-tratos no comércio de animais domésticos

O comércio de animais que se quer chamar a atenção aqui é aquele de animais domésticos, mais especificamente de cães e gatos. Esse pode ser um dos mais difíceis casos de antropocentrismo de se denunciar.

Quem nunca passou por um filhote de raça em uma vitrine de pet shop e quis leva-lo para casa? Ou se deparou com anúncios de venda de filhotes de sua raça favorita e não ficou tentado a adquiri-lo? Ou até mesmo não ficou sabendo por um conhecido que haviam filhotes de raça à venda por um preço “acessível”?

Comércio de animais domésticos

Essa é uma realidade que todos passamos ou podemos passar em nossas vidas. O comércio de animais domésticos tem intuito único de entreter afetivamente as carências do ser humano. Aqueles que vivem ou viveram uma vida antropocêntrica aceitam essa realidade com naturalidade, porque, certamente, para essa parcela da sociedade, animais são criados para servir ao ser humano.

Apenas exemplificativamente, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que datam do ano de 2013 – há mais de cinco anos -, dão conta do número de 52,2 milhões de cães e 22,1 milhões de gatos, deixando o Brasil em quarto lugar em número de animais de estimação.

Inobstante a isso, importa ao menos refletir sobre essa forma de exploração animal. Em sua grande maioria, animais provenientes do comércio de filhotes provêm do que se pode chamar de “fábrica de filhotes”.

Mas como assim “fábrica de filhotes”? Essa expressão vem se tornando mais conhecida nos últimos anos, uma vez que as organizações em defesa dos animais vêm reiteradamente alertando a sociedade sobre a crueldade intrínseca dessa modalidade de exploração animal.

Para entender essa forma cruel de comércio de animais, podemos começar com a própria concepção de animais de raça, que são aqueles reconhecidos pela Federação Cinológica Internacional (FCI) e, no Brasil, pela Confederação Brasileira de Cinofilia (CBC).

Animais das raças shih tzu, pug e yorkshire terrier, por exemplo, apresentam diversos problemas congênitos como dificuldades respiratórias, infecções nos ouvidos, doenças oculares e de pele. Essas patologias decorrem principalmente em razão dos cruzamentos realizados para obter uma “raça pura” e aprimorar determinadas qualidades desejadas com o passar dos anos.

Ao adquirir um animal com patologias genéticas, a pessoa está fomentando um mercado cruel e que não está interessado no bem-estar e muito menos na vida dos animais envolvidos. Muitos desses vivem uma vida de sofrimento em razão das doenças e das características que lhe foram atribuídas pelo manuseio humano.

As “fábricas de filhotes” são uma forma de crueldade para com esses animais, principalmente quando estamos nos referindo a criações de “fundo de quintal”. O caso do pinscher macho que fora mutilado para ser vendido como fêmea causou espanto às pessoas, mas a existência de maus-tratos e crueldade a esses animais têm origens muito além dos casos polêmicos.

Notícias denunciando criadores que mantinham animais presos em gaiolas sem alimento, água ou higiene mínima são frequentes. E não são poucas as pessoas que adquirem um animal com o intuito de utilizar o mesmo para procriação e venda dos filhotes, como uma forma de renda extra fácil.

Muitos desses animais são literalmente utilizados como máquinas de procriação, gerando uma ninhada após a outra, até que não servem mais ao criador, quando são vendidos, doados ou abandonados.

Em sua grande maioria são permanentemente mantidos em gaiolas a vida toda e seus filhotes são retirados de seus cuidados a partir de um a dois meses, causando agoniante e constante estresse. Mas o que isso tem a ver com a compra de um animal que será muito amado e muitas vezes considerado um membro da família?

Maus-tratos e animais domésticos

O artigo 32 da chamada Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) determina que é crime:

Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

§1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

Dessa forma é possível questionar se ao adquirir um animal de uma raça que reconhecidamente possui doenças e deficiências genéticas, proveniente de criadores que exploram esses animais até não servirem mais, não estaríamos praticando maus-tratos?

A lei acima citada não especifica o que deveria ser considerado maus-tratos, mas podemos ter um parâmetro a partir do antigo Decreto-Lei n. 24.645/34, que estabelecia medidas de proteção aos animais:

Art. 3º Consideram-se maus tratos:

I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;

II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;

[…]

V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; […]

O Decreto, embora exista discussão com relação à sua atual vigência, pode nos conceder as concepções de maus-tratos que o legislador quis chamar a atenção. Além disso, existe um padrão mínimo de bem-estar animal estabelecido pelas cinco liberdades que todo animal deve ter: liberdade de fome e sede, liberdade de dor, lesões e doenças, liberdade de desconforto, liberdade de medo e estresse e liberdade de expressar comportamento natural.

Evidentemente, existe total desrespeito às concepções mínimas para que um animal possa viver livre de maus-tratos. Portanto, resta questionar quem gostaria de fomentar um mercado cruel como esse?

Além disso, a crueldade é outra questão proibida em nosso ordenamento jurídico, uma vez que, como já é notoriamente reconhecido (ou ao menos deveria ser), a nossa Constituição Federal veda práticas que submetam animais à crueldade em seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII.

Portanto, existe maus-tratos na forma de exploração animal denunciada?

A crueldade é intrínseca a essa forma de exploração animal e, consequentemente, os maus-tratos também, porque além das patologias previamente existentes nas raças “puras”, existe todo um processo de criação de filhotes que é desumano e frequentemente denunciado em razão da existência de monstruosas irregularidades no manejo dos animais.


REFERÊNCIAS

CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE CINOFILIA (CBC). Raças. [s.d.]. Disponível em: http://cbkc.org/racas. Acesso em: 26 ago. 2018.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA (CFMV). CFMV lança campanha sobre bem-estar animal. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago. 2018.

CONHEÇA TIÃO, o cachorro que foi mutilado para ser vendido como fêmea. O Povo, 14 out. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago. 2018.

FEDERATION CYNOLOGIQUE INTERNACIONALE (FCI). FCI breeds nomenclature. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago. 2018.

GRAMINHANI, Márcia Graça. O bem-estar dos cães domiciliados em apartamentos. In: Revista Brasileira de Direito Animal, v. 2, n. 2, p. 187-205, 2007. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago. 2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). População de animais de estimação no Brasil. Rio de Janeiro, 2013. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago. 2018.


Sobre maus-tratos, comércio de animais e animais domésticos, leia também:

  • A exportação de animais vivos sob a perspectiva criminal (aqui)

Maria Cândida Nascimento

Mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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