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Medicina, dolo e culpa: análise de caso 

Medicina, dolo e culpa: análise de caso 

As dificuldades em lidar com o dolo eventual e a culpa consciente/inconsciente nos moldes do finalismo são, em geral, levantadas a partir de casos oriundos de acidentes de trânsito. Pretende-se aqui oferecer uma análise procedendo de outro ambiente em que situações limítrofes tendem a ser cada vez mais comuns.

O caso é: médico com pouco experiência, porém com competência comprovada, recebe, em hospital de cidade de médio ou pequeno porte, paciente apresentando severas dores na região abdominal inferior direita, que irradiam para região púbica.

Após anamnese sumária, conclui se tratar de crise aguda de apendicite. Ato contínuo, decide efetuar apendicectomia emergencial. Não dispondo dos instrumentos necessários para a prática de intervenção menos invasiva e não podendo contar com um segundo diagnóstico em tempo hábil, solicita que a paciente seja preparada para o procedimento cirúrgico.

Após a incisão, percebe o erro de diagnóstico. As dores proviam de um problema de ordem intestinal, não necessitando intervenção cirúrgica, mas apenas medicamentosa. Porém, devido a problemas congênitos de coagulação, desconhecidos pela paciente e não percebidos pelo profissional devido a anamnese sumária, a incisão provoca sangramento substancial. A situação se agrava e a hemorragia traz a paciente a óbito.

Em que pese meu parco conhecimento médico, confirmei com colegas da área que a situação é bastante factível (para sairmos do Caio, Tício e Mévio).

Diante desta situação, caberia falarmos em dolo eventual, entendendo que, ao decidir efetuar o procedimento cirúrgico, o profissional assumiu por sua conta os riscos, devendo arcar com as consequências como se fosse obra sua a morte da paciente?

Seria o caso de entendermos que houve culpa consciente, alegando que o médico fez um prognóstico entre a ação e a inação e acreditava conseguir, através de sua perícia, contornar os possíveis (previsíveis) problemas oriundos da falta de análise limite acerca das condições prévias para um procedimento cirúrgico?

Deveria o caso ser classificado como culpa inconsciente, sendo os dados suficientes para atestarmos que o médico visava claramente poupar a paciente de dores severas e dos graves problemas que poderiam advir da não intervenção, que então nem sequer projetou mentalmente os problemas que poderiam surgir?

Mais ainda: estaria a situação coberta pelo que dispões o art. 146, § 3º, I do CP? Seria o fato atípico diante disto? O perigo, chamado equivocadamente no artigo “perigo de vida”, quando se trata de iminente perigo de morte, pode ser atestado mediante análise sumária, observacional ou através de toque e perguntas ao paciente e familiares, ou exige mecanismos de diagnóstico mais precisos?

Neste sentido é interessante notar a dificuldade em encontrar, mesmo na literatura especializada, critérios consensuais para aferição do iminente risco de morte. Na pesquisa que realizei, encontrei critérios distintos, com utilização de variáveis nem sempre coerentes entre si.

Não encontrei muito guidelines que se propusessem especificamente a esta análise. A maioria havia sido confeccionada para atendimento de UTI móveis. Os que foram encontrados como diretrizes hospitalares, no mais das vezes faziam menção a um laudo a ser assinado por dois profissionais, no mínimo, com especializações diferentes.

Última questão: o consentimento informado do paciente traria diferenciação substancial na apreciação do caso? Ou seria artifício inidôneo para aferição de responsabilidade, já que a paciente, na situação em que se encontrava e não dispondo de nenhum conhecimento acerca das variáveis de análise de risco típicas da medicina, acabaria por depositar total confiança no juízo efetuado pelo profissional?

No texto de hoje pretendi apenas levantar as questões. Me pronunciarei sobre elas na próxima semana, desejando primeiramente “ouvir” as manifestações que poderão ser oferecidas pelos leitores no decorrer da semana.

Até lá!


Na próxima semana: Medicina, dolo e culpa: análise de caso (Parte 2)

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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