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“Mestre, cadê o Boca Santa?”

“Mestre, cadê o Boca Santa?”

Havíamos entrado para a história do sistema prisional brasileiro, mas de uma forma triste, com morte, sequelados tanto física como psicologicamente presos, agentes penitenciários, uma enfermeira e visitantes. Uma transformação nas leis do cárcere. Rebelião em fim de semana.

Seria a primeira rebelião no Brasil e realizada no dia de visitação aos presos. Isso antes era inadmissível no meio prisional, os regulamentos de conduta criminal que vigoravam à época não permitiam rebelião em fim de semana, em virtude ao respeito para com os visitantes. E o PCC mudou isso.

Vários agentes penitenciários tinham se afastado por motivo de doença profissional em virtude da rebelião (torturados à frente de outros servidores e servidoras). E a polícia militar, CHOQUE, e etc. (na verdade estavam lá vários órgãos, departamentos e etc., de todas as esferas, tudo era documentado, filmado e etc., aquilo deveria ser estudado) nos entregava a cadeia.

As portas dos barracos não fechavam porque arrancaram as trancas, entortaram as portas. E muitas portas tinham sido arrancadas e usadas as partes de metal como facas (“no ‘jacaré’ – serra – desce que nem faca na manteiga mestrão !”) e a parte interna, que era de madeira, foi usada para fazer o churrasco.

Foram dias de festa. Eles estavam de posse da cozinha com câmaras frias lotadas de alimentos. A padaria também estava à disposição deles. Muita droga, “maria louca” (aguardente feito na cadeia) à vontade.

O Piranhão, ou seja, o Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, a Maternidade do PCC, enviara ao Berço do PCC (cadeia de onde os membros saiam para o regime prisional comum, que era onde eu estava ainda dando meus primeiros passos como agente penitenciário) muitos integrantes do PCC e a cadeia não suportou.

Ninguém queria subir o morro, ir para o fundão da cadeia, assumir o barril de pólvora, encontrar a Nata do PCC, encarar toda aquela “loucura” (a prisonização também destrói quem trabalha no cárcere, assim como também ficamos despersonalizados e sofremos os males do cárcere, eu sou uma testemunha disso!).

Um estudo recente da Universidade do Estado de Washington (EUA) mostrou que 19% dos guardas de prisões dos Estados Unidos sofrem com Síndrome de Estresse Pós-traumático. Esse transtorno é uma resposta a um evento traumático, como guerra, sequestro, abuso sexual ou acidentes. O estudo em inglês pode ser acessado aqui.

Preocupa-me muito a situação não somente dos presos que ali estão submetidos às mazelas do cárcere[1]  mas as dos agentes penitenciários de nosso país, que estão tirando suas vidas tendo em vista o descaso do governo, inclusive descaso do governo federal.

Mas sabemos que somos apenas peças de reposição e que “é só chamar” um outro que passou no concurso, que ainda está “valendo” para repor a vaga deixada por aquele que não aguentou a doença profissional e tirou sua vida.

Eu falei que ia para lá. Levei umas folhas de sulfite e canetas. Não tinha chave nem nada. Tudo destruído. Subi o “morro”. Perguntaram-me que posto eu ia assumir. Respondi que não sabia, tendo em vista que não sabia ainda o que estava de pé, se o trânsito de presos entre os Raios estava livre e etc.

“Boca Santa”

Ninguém sabia o que estava acontecendo no “fundão”, ninguém ainda tinha o enfrentado após a rebelião! Eis que vem um preso até mim e me diz:

– Mestre, não aguento mais chupar P. de ladrão! Na rebelião foi fogo! Antes os presos comiam a minha irmã. Nisso ela deixou de vir me visitar e só sei dela quando ela me escreve cartas ou pipas que minha mãe me entrega nos dias de visitas. Como a minha irmã não vinha mais me ver, eles agora estão comendo minha mãe. Só que ela também parou de vir e agora dezenas de presos por dia me fazem chupar o P. deles.

Fui investigar essa história. Informei os fatos ao “pessoal da penal”, que tomaram as providências cabíveis. Passado um tempo veio um preso até mim e perguntou:

– Mestre, cadê o “Boca Santa”?

Há um controle rígido das pessoas que saem dos Raios habitacionais. Tem preso que quer saber aonde o outro foi. A função dele (que foi estipulada pelo PCC) é verificar o destino dos presos que saem a fim de saber se alguém vai entregar algum túnel, faca, celular, plano de fuga ou algum plano do PCC, seja ele dentro ou fora dos muros da prisãoA pergunta e meio que resposta que dei a esse preso foi:

– Quem é esse tal “Boca Santa” e você tá “cuidando” por quê!?

Eis que escuto a resposta dele sobre o “Boca Santa”:

– Os presos estão sentindo falta dos “serviços” dele!

E me deu uma risada bem debochada. “Boca Santa”…

Realmente é o que eu sempre digo quando de minhas conferências ou aulas:

– O crime não é para qualquer um! Não podemos continuar com esse encarceramento em massa! Temos que ter uma seletividade de quem realmente representa perigo a sociedade e nesse caso cercear sua liberdade, mas individualizando a execução de sua pena de conformidade com o perfil criminógeno constatado nessa pessoa.

Não podemos mais alimentar as facções e organizações criminosas com pessoas que não deveriam servir de alimento do moedor de gente que é o sistema prisional.

Não podemos permitir que essas pessoas que não foram condenadas a essas penas cruéis, e que agora estão sujeitas e seus visitantes (a pena infelizmente vem a ser transpessoal, ou seja, transcende a pessoa do preso, atingindo seus familiares e também os agentes penitenciários e por reflexo nossa sociedade também (depois que ele já estiver mais criminalizado pelos efeitos da prisonização, da cultura que existe no cárcere e depois de ser castigado com a privação da liberdade que com a privação de diversos direitos e garantias fundamentais), voltar ao seio da sociedade, agora transformado pelo castigo que a sociedade tanto lutou para que ele tivesse, sob a bandeira da “pessoa de bem”.

A sociedade quer apenas a vingança, independentemente se ela está prevista em lei ou se estão praticando crimes contra essas pessoas. E essa sociedade estará preparada para receber esse preso que já foi castigado no cárcere e que, de “brinde”, está muito mais criminalizado?

Mas sou um sonhador, acredito no ser humano, acredito que o preso, se assim desejar, ele pode se recuperar, desde que o Estado lhe dê suporte (assistência), cortando assim os braços das organizações criminosas que abraçam os presos suprindo o abandono do Estado, conforme verificamos através da matéria Com questionário, PCC faz “censo” e avalia comida, atendimento jurídico e de saúde em presídios (veja aqui). 


NOTAS

[1] Sabemos que há um desvio na execução penal. A qualidade da pena não é essa a que ele foi condenado na dosimetria da pena quando da individualização da pena, ou, na classificação feita pela CTC, conforme previsto na Lei de Execução Penal. Se é que na unidade prisional existe tal grupo, mas de uma coisa não tenho dúvida: deveria existir e realizar tal mister. Afinal de contas, está na LEP.

Diorgeres de Assis Victorio

Agente Penitenciário. Aluno do Curso Intensivo válido para o Doutorado em Direito Penal da Universidade de Buenos Aires. Penitenciarista. Pesquisador

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