A Metamorfose: da invisibilidade ao extermínio
A Metamorfose: da invisibilidade ao extermínio
Escrita em apenas vinte dias no ano de 1912, A Metamorfose, do austríaco Franz Kafka, é uma obra acrônica, permanente e autêntica.
Acrônica, pois não se prende a determinado tempo, sendo útil e eficaz em situações que ocorrem na rotina de cada época que passa.
Permanente, uma vez que tais circunstancias narradas se perpetuam e se desenvolvem em toda a coexistência humana; vez ou outra.
Autêntica, eis que permite a interpretação e reinterpretação (e incorporação/reincorporação) de todos os seus arquétipos, estruturados em matrizes que realmente organizam toda a concepção das sociedades atuais e do passado também.
Numa narrativa ousada, Kafka consegue demonstrar todos os problemas vividos por pessoas comuns ou renomadas, mas desde que convivam em uma esfera social de troca de experiências e significados.
Nesse ponto, nada mais apreciável que Gregor Samsa, o caixeiro viajante responsável pela subsistência de toda sua família, sem tempo para reles amizades ou furtivos momentos de lazer, laborando em um emprego que não gosta, mas que sabe ser a diferença entre sua vida e sua perdição.
A inconstância dos valores do homem em sociedade passa a ser medida pela quantia financeira que consegue montar, ou por seu status social, desde que ascendente em tal coletividade.
Dessa maneira, a crítica de Kafka consegue transpor uma barreira antes não percebida pela literatura, mas que sempre se fez presente na vida real e em suas formas de apartação, segregação e distinção de uns e outros: a metamorfose social e a invisibilidade do homem que se transforma.
De toda sorte, aquele que se transforma, muitas vezes por fatos aleatórios ao seu desejo, pois vivente em um sistema que confabula com a crescente meritocracia, pode vir a ser menosprezado em todas as suas condições (e inclusive humana), caso essa mutação não perfaça os anseios sociais de sucesso, bondade e de positiva influência.
Por certo Kafka transforma toda a sua angústia em Samsa, ao metamorfosear-se em um inseto gigante, sendo visto pela própria família como aquele que deve ser apartado, escondido e morto.
Realizando a transmutação, consegue com sua genialidade demonstrar os problemas não apenas da família do caixeiro viajante cuja forma agora era a de um inseto gigante; mas de toda sociedade, ao distinguir entre os seus aqueles que merecem a invisibilidade.
Entretanto, Samsa transforma-se repentinamente. A princípio, o medo de sua família não era maior que a preocupação do homem em mutação de chegar atrasado ao seu trabalho, pois entendia a importância do labor para todos os seus. Logo após, o nojo e a segregação, e, por fim, a tão esperada morte do inseto que não mais pertencia à família, mas sim, irreconhecível, agorento, nojento.
E é dessa forma que o homem desaparece. Transformando-se, em sociedade, naquilo que a vida lhe permite ou que lhe abençoa/amaldiçoa que seja. Relatos de vidas descartáveis e que podem ser desprezadas são comuns tanto no Direito Penal, quanto nas histórias das pessoas comuns.
Esse descarte é realizado de forma medonha, vil e temerosa. A invisibilidade de alguns é tão latente que até sua dor não se repara; não se discute. Dependendo de profissões, uniformes, escala social, cor e até mesmo, conhecimento; esse ser humano pode ser desprezível, desdenhável e pesado pelo seu fardo.
Com a alcunha de invisível transforma-se, assim como Samsa, naquele que deve ficar escondido dos demais, pois causa o asco, apartado de todos, pois relembra as falhas sociais de convivência e de promoção humana, e também exterminado; pois sua presença é uma síncope de todos os sentidos de grandeza social ao qual estão fadados todos os homens de bem.