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Metamorfose literária: a literatura como fonte do direito

Metamorfose literária: a literatura como fonte do direito

Texto em homenagem aos professores Guilherme Alcântara e Renato Herbella

Provavelmente “A Metamorfose” seja uma das obras mais conhecidas do renomado escritor Franz Kafka (para alguns, “Kafta”). Claro que a narrativa, a seguir, contém alguns “spoilers”.

A obra “curtinha” traz uma história com uma narrativa envolvente, direta e sem muitos “embelezamentos”. Em dita obra, o protagonista, Gregor, um caixeiro viajante (que não gosta de sua profissão e do seu chefe, mas que, é obrigado a trabalhar para honrar débito e sustentar sua família), transforma-se em um inseto (por vezes, sua transformação, derivada de termo de origem alemã, é interpretada como a de uma barata).

Referida novela, além da metamorfose corpórea da personagem, traz inúmeras outras mudanças, sejam elas no seio familiar dentro do qual ela esta inserida, bem como em sua relação de trabalho (dentro da qual tenta regressar, sem, contudo, lograr êxito).

Sua desumanização é um aspecto marcante na leitura: com o decorrer do tempo, Gregor passa a se acostumar com sua nova fisionomia e a explorar novas oportunidades que esta lhe confere.

Ainda, neste sentido, passa a ser isolado da convivência dos demais, de modo que o seu ambiente passa a ser o de seu quarto (que começa a ser limpado por sua irmã), alimentado esporadicamente e, de forma amena, acompanha os atos, reuniões e rituais familiares (por meio de uma porta entreaberta).

Se não bastasse, dada a falência financeira da família, a mesma decide alugar um quarto para três inquilinos, fato este, que por si só, enseja um maior isolamento da personagem. Tanto é que, após lhe verem em sua atual condição, rescindem o contrato locatício e começam a processar os locadores.

Solitário e de forma deprimente, acaba falecido em decorrência da inanição que lhe é afligida.

Neste diapasão, o grande comparativo, ao nosso ver, a ser feito com a obra, é aquele que diz respeito ao direito brasileiro.

Embora a transformação não tenha sido repentina (tal qual o perturbado sono que envolve a personagem), há, indiscutivelmente, uma metamorfose no direito brasileiro. Houve uma superação do simples positivismo.

Longe de discutir uma fusão entre tradições jurídicas (entre civil law e common law, como já abordamos em outra oportunidade), o atual modelo é obsoleto. É carente de novas fontes (sejam de prisma material e/ou formal) e o direito é visto tão somente pelo direito, em um viés autossuficiente.

Essa ilusão, angustiante e a isolada de uma necessária fusão de horizontes [4], leva a uma falsa concepção de que o direito, em uma ótica pátria, restrito à interpretação de normas, é suficiente para que o operador pacifique conflitos e encontre “justiça”.

Todavia, enquanto ciência social, o Direito padece do diálogo com outras disciplinas. Não é possível isolar o monstro em um quarto e alimentá-lo conforme seja conveniente (e olha que a cada dia que passa são criados novos mecanismos para que o ciclo se repita). Daí a ideia de interdisciplinaridade, especialmente com a literatura, tão preconizada e defendida por autores como Paulo Silas Filho, Lenio Streck, André Karam Trindade e Alexandre Morais da Rosa, entre outros.

É fato que a inserção da literatura geraria metamorfoses no estudo, interpretação e aplicação do direito brasileiro. O mundo, superficial, de manuais e sinopses daria lugar a todo um universo de histórias e, especialmente, de novos caminhos a serem percorridos.

Traçando um paralelo, os familiares de Gregor podem ser comparados aos atingidos pela mudança: novas relações irão se estabelecer e, principalmente, será quebrada uma zona de conforto (conveniente e lucrativa que impera no atual sistema).

O mais alarmante é que a proposta deste dialogo não é recente. Estas remontam ao ano de 1925. A análise de textos literários permite auferir os costumes, a sociedade e principalmente o “direito” de uma época e local, em especial.

Assim, lacunas atuais e substanciais podem ser preenchidas com os ensinamentos trazidos por outra(s) época(s). Registre-se, por oportuno, que esta visitação ao passado já é feita na tradição jurídica da common law e, especialmente, dentro do sistema de precedentes trazidos por ela (recentemente e, ainda que de modo diferente, trazidos à nossa tradição jurídica).

Portanto, a inserção da literatura, de modo gradual e responsável, deve ser meta no mundo jurídico, superando a premissa de um direito em si e para si. O despertar deve trazer, consigo, um novo horizonte próspero.

REFERÊNCIAS

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.


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Gabriel Teixeira Santos

Advogado. Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2018-2019).

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