Meu primeiro processo criminal

Por Anderson Figueira da Roza

Após anos de atividade profissional como advogado criminalista, tive a oportunidade de presenciar as mais diversas experiências que nunca ficaram fixadas apenas na esfera penal. Cada caso marca uma trajetória profissional, mas o primeiro processo é sempre aquele inesquecível.

Ainda acadêmico, ficava na contagem regressiva dos semestres não apenas para a formatura em Direito, mas para atuar. Era uma ansiedade quase descontrolada que me fez devorar livros, ver documentários, assistir julgamentos. Confesso que essas atitudes fizeram o tempo passar mais rápido e após a aprovação no Exame da Ordem, tem aquele espaço de tempo até a efetiva entrega da Carteira Profissional, que serviu para montar o meu primeiro escritório, na época, dividido com mais profissionais que nem eram advogados.

Eu só queria atuar na advocacia criminal e os meus amigos e conhecidos, em tese, não eram criminosos, no sentido específico, afinal eles apenas reproduziam livros em xerox, compravam cds e dvds piratas, mas isso nunca renderia processos, só registravam ocorrências policiais como vítimas. Eu estava fadado a morrer de fome em breve, se não tomasse atitudes para me prospectar na carreira.

Mas ao receber a carteira de advogado e finalmente me sentir apto a exercer a advocacia, tive a ideia de anunciar meu nome e telefone em classificados dos jornais de circulação. Aqueles pequenos, retangulares que as pessoas só leem para comprar ou vender casas, carros, animais de estimação. Para mim seria improvável haver algum retorno deste ato. Sem qualquer noção, inclusive, anunciei uma semana inteira, iniciando num domingo até o próximo sábado.

Lembro como se fosse hoje, um final de tarde do primeiro domingo de anúncio, e recebo uma ligação de um número desconhecido, atendi e do outro lado vem uma voz: Alô, é do advogado, como é mesmo o nome, Dr. Anderson? Rapidamente constatei que eu estava enganado e de fato, as pessoas leem os classificados procurando advogados criminalistas, ao telefone respondi e perguntei: Sim, em que posso lhe ajudar numa hora dessas?

A conversa durou poucos minutos, o cidadão estava nervoso e com medo, pois duas semanas antes desta ligação ele havia matado uma pessoa, e que ficou de me informar todos os detalhes na manhã seguinte, em tese, estava encaminhado meu primeiro cliente, mas de cara um homicídio, quase nem dormi pensando que teria um tribunal do júri pela frente em breve.

Na hora marcada, entrou na minha sala este senhor acompanhado de sua mulher, seu casal de filhos e sua cunhada, nada menos do que cinco pessoas. Olhando para o tal senhor que havia me ligado, me chamou a atenção que tinha um curativo no olho esquerdo, um vasto derrame por conta disso, e todos estavam muito nervosos, querendo falar ao mesmo tempo, tive que me impor e pedir que primeiro ele falasse e que depois os outros poderiam complementar, se necessário.

A história era muito simples se eles não tivessem sido orientados por outro advogado a mentir na polícia. Em resumo, houve uma festa duas semanas antes na casa da cunhada deste senhor, e além das cinco pessoas que estavam naquele momento no meu escritório, participaram os respectivos cônjuges do casal de filhos deste senhor e a vítima fatal. Festa de família, muita comida e bebida, mais bebida é claro, e lá pelas tantas o cunhado sentiu-se enciumado com a presença daquele senhor e passou a ofendê-lo e querendo brigar a qualquer custo. Foram contidos e afastados pelos demais familiares, a vítima estava no interior da residência e meu cliente estava sozinho na cozinha. Dizendo sentir-se envergonhado e chorando, a vítima prometeu aos demais familiares que iria desculpar-se e foi até a cozinha e propôs um brinde como sinal de paz, ao qual rapidamente estourou e esfregou o copo no olho do meu cliente, e logo pegou uma faca que estava sob a mesa e disse que o mataria. Tudo muito rápido entraram em briga e meu cliente mesmo machucado, conseguiu segurar a mão da vítima, mas apunhalou seu cunhado na parte lateral do tronco na altura do rim direito, tudo isso com ambos segurando a faca, uma mão sobre a outra.

A cena parecia a de um filme, duas famílias, os dois homens que brigaram estavam bem machucados, ambos na mesma ambulância em direção ao Pronto Socorro da cidade. Infelizmente, mesmo após uma cirurgia, seu cunhado não resistiu e veio a óbito no dia seguinte.

Apavorados, uma tragédia familiar, precisavam esclarecer aos parentes da vítima o que de fato tinha acontecido, e procuraram um advogado para que os orientasse no que fazer. Este colega de profissão os orientou que contassem aos familiares e à polícia que eles haviam sido lesionados na entrada da residência por assaltantes, e que ninguém teria visto maiores detalhes. Quanto à faca, foram orientados a jogarem no lixo e assim procederam.

No entanto, rapidamente a polícia teve acesso aos prontuários e as ocorrências registradas das duas pessoas que chegaram juntas naquela madrugada no Pronto Socorro e viram que ambos relataram que havia tido uma briga, porém atribuíram aos agressores os apelidos, não seus nomes, de onde se verifica que de fato eram amigos e também queriam se proteger mutuamente, talvez até tenham combinado algo assim na ambulância, nunca tive essa confirmação.

O grande problema foi que alguns familiares já tinham prestado esclarecimentos à polícia, e contado a tal história deste assalto mal sucedido que culminou com as lesões de ambos. Porém, faltava ser ouvido meu cliente, e seu filho. Todos marcados para aquele dia na parte da tarde.

Enfim, após este detalhamento dos fatos, pensei e falei: vocês terão que contar a verdade daqui pra frente. Tive uma desconfiança naquele instante que a polícia poderia estar pensando que o autor do fato seria o filho do meu cliente. Na chegada da Delegacia, eu inexperiente, deixei que os policiais ouvissem primeiro o jovem rapaz. Eu estava certo no que previa, ele foi massacrado por perguntas, e queriam saber onde tinha sido a facada, se foi pelas costas, em qual sentido, com que mão. O jovem, apavorado negava tudo. Finalmente terminou aquele depoimento e chamaram meu cliente e ele confessou tudo nos mínimos detalhes. Após este depoimento os policiais resolveram reinquirir os demais familiares nos dias seguintes. Encerrado o inquérito, meu cliente indiciado por homicídio qualificado. Como não houve flagrante e meu cliente era funcionário público sem qualquer antecedente, tinha todas as condições de responder o inquérito em liberdade, não houve representação pela sua prisão preventiva.

Desta forma, o processo correu de forma lenta, levou anos até a sentença de pronúncia, apenas por homicídio simples. Nesse intervalo de tempo, diversos processos ocorreram na minha carreira, logo, este não foi o meu primeiro júri. Mas a cada ato deste processo, vinha um carinho especial por ter sido o primeiro, e obviamente eu queria mais do que em qualquer outro, chancelar esta absolvição.

Aprendi demais com este processo, inclusive, que o tempo de espera por um julgamento não pode ser tão longo. O processo em si já uma pena, meu cliente nunca mais foi o mesmo após este fato, acabou tendo muito problemas psicológicos e psiquiátricos, afinal ele havia matado um homem que ele admirava e convivia e nunca se perdoava ao ver sua cunhada e sobrinhos. Ao longo do tempo ele teve internações para tratamentos psiquiátricos, foi perdendo sua capacidade de pensar e de falar.

Havia uma nítida diferença de concentração e na forma de conversar desde o dia em que ele esteve no escritório até à véspera do julgamento. Juízes e Promotores mudaram no decorrer do processo, mas eu e meu cliente éramos mantidos pela força do tempo. A prova era nítida e conclusiva pela legítima defesa, tirando é claro aqueles primeiros quinze dias de depoimentos mentirosos que foram tomados novamente, mas havia aquela mácula no início do inquérito, as testemunhas tanto de acusação como defesa foram apenas os participantes daquela janta, e todos foram unânimes em afirmar que ele se defendeu para não morrer. Porém, como o cliente alternava o comportamento e devido suas internações decidi com ele que se o Ministério Público viesse com a intenção de condená-lo, ele iria utilizar o direito ao silêncio parcial em plenário.

Antes de começar o julgamento, como sempre faço, conversei com o representante do Ministério Público e perguntei se ele viria para a acusação ou se pelos elementos de legítima defesa, pediria a absolvição do meu cliente. De forma arrogante me respondeu: Não sei, decidirei na hora! Não julguei o peso dessa declaração, apenas orientei meu cliente a não responder qualquer pergunta do Ministério Público.

Começa o interrogatório em plenário, feita a qualificação e após poucas perguntas pelo Juiz, foi passada a palavra ao Ministério Público, de pronto me manifestei que o acusado não responderia qualquer pergunta da acusação e meu cliente confirmou isso. Pronto, um ambiente bélico que muitos adoram assistir em Plenário. Abriram-se os debates e o Ministério Público não se conteve e cometeu o erro fatal de criticar o silêncio do acusado para suas perguntas, violou a regra do art. 478 do Código de Processo Penal[1].

Neste momento houve o primeiro pedido por parte da defesa de dissolução do Conselho de Sentença, ao qual o juiz não concedeu, mas pedimos que registrasse em ata. Prosseguiu o Ministério Público na acusação e alguns minutos depois, nova crítica ao silêncio do acusado, de forma irônica. Outra vez pedimos a dissolução do Conselho de Sentença e de novo negado, pedimos o registro em ata pela segunda vez.

Sustentamos a legítima defesa em plenário, e depois fomos para a sala secreta e realizada a votação, houve a condenação do acusado por quatro votos a dois, não soubemos o voto do último jurado. Recorremos ao Tribunal de Justiça por dois fundamentos: a) a nulidade pela violação ao art. 478 do Código de Processo Penal; b) pela decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Felizmente o Tribunal de Justiça além de reconhecer a nulidade pelas críticas ao silêncio do acusado também se manifestou no sentido que a decisão dos jurados era contrária à legítima defesa. Julgamento anulado e quase dois anos depois, foi designado novo plenário.

Neste segundo julgamento, meu cliente já estava em estado deplorável pela sequencia de internações, inclusive, para não fazer o julgamento sem a sua presença, assumi a responsabilidade pela sua alta hospitalar e o retirei da internação uma hora antes do julgamento, e o levei ao Foro. Estava completamente dopado por medicações para tratamentos psiquiátricos, apenas balbuciava algumas poucas palavras, sem raciocínio algum, ficou completamente em silêncio neste dia, mas estava ali.

Felizmente um novo Promotor neste julgamento, e atento ao processo, e também ao estado que se encontrava meu cliente, pediu a absolvição do acusado, a mim coube apenas tecer pouquíssimas palavras e reiterar o pedido de absolvição. Inesquecível este rápido julgamento.

Foi uma espera de quase uma década, onde aprendi que devemos atuar sem medo, que o primeiro processo deve ser realizado com calma, carinho, e acima de tudo com frieza. Embora tenha sido o primeiro, ele teve problemas do início ao fim, mentiras, atrasos, nulidades, julgamento injusto e outro justo. O processo não pode demorar mais do que uma pena, meu cliente nem noção tinha mais do que fizera, e das consequências da sua absolvição, ele mesmo se condenou e literalmente enlouqueceu por conta dos fatos e do processo.

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[1] Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:

I – à decisão de pronuncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;

II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.

AndersonFigueira